Jairo Marques https://assimcomovoce.blogfolha.uol.com.br Assim como você Tue, 07 Dec 2021 19:25:10 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Por que nos emocionarmos com nossos velhos vacinados? https://assimcomovoce.blogfolha.uol.com.br/2021/03/30/por-que-nos-emocionarmos-com-nossos-velhos-vacinados/ https://assimcomovoce.blogfolha.uol.com.br/2021/03/30/por-que-nos-emocionarmos-com-nossos-velhos-vacinados/#respond Wed, 31 Mar 2021 02:15:02 +0000 https://assimcomovoce.blogfolha.uol.com.br/files/2021/03/vacinavelho-320x213.jpg https://assimcomovoce.blogfolha.uol.com.br/?p=3981 Coisa linda e emocionante tem sido ver fotografias e vídeos de velhos de diversas famílias de amigos, parentes, agregados e conhecidos sendo picados Brasil afora com vacinas que renovam a esperança de vida após tantos estragos pandêmicos.

Com nossos velhos a caminho de mais proteção em meio a essa fatalidade toda, amplia-se a disposição para acreditar que nós mesmos iremos conseguir respirar melhor em um futuro, quem sabe, breve.

Parte das aflições que se tem de encarar nestes tempos é imaginar gente que amamos estirada em leitos hospitalares intubada ou submetida a tratamentos, terapias e medicações que, até então, se pensava ser para casos extremos de enfermidades avançadas.

Quando esse exercício trágico de pensamento é feito na perspectiva de alguém que já viveu sete, oito, nove décadas, com bagagens de possíveis outros momentos espinhosos e um corpo potencialmente mais cansado, parece que o lamento é ainda mais avassalador, para quem é de lamento.

A tormenta que a ronda da morte tem provocado no dia a dia vai colocando poeira no horizonte que se quer finalmente ver mais acolhedor, mais caloroso, menos ancorado na angústia. Quando alguém se vacina, uma chuva fininha parece cair e uma brisa de boas novas ensaia dar um refresco.

Em muitas das imagens que se contemplam de imunização de pessoas mais velhas é possível ver, além de um grande ar de alívio, um semblante de cansaço por tantos meses confinados, de afastamento de gente querida, de promessa de mais liberdade para amassar os netos, bisnetos e sobrinhos em breve.

Minha velha mãe tomou a segunda dose de Coronavac faz poucos dias. Dei uma choradinha vendo o retrato dela, de máscara e óculos embaçados, meio acuada no árido ambiente de vacinação.

Tenho convicção de que se imunizar, na cabeça de dona Marli, foi ato muito mais em razão de seguir para dar suporte aos outros do que soprar mais vida a si mesma. Tendo a achar que essa lógica cabe a muitos outros de nossos velhos, combalidos emocionalmente por tantos meses de tantas dores.

“Agora já estou pronta para ajudar no que precisar, meu filho”, disse mamãe, que ainda não tem muito certo nas ideias que vamos precisar de mais tempo e paciência para pensar em alguma rotina.

Um velho imunizado pode representar uma criança mais feliz, uma vez que ela poderá, se tudo correr bem –sim, a ressalva é sempre necessária neste momento– voltar a seu celeiro de mimos com mais segurança.

Um velho imunizado pode representar a chance de mais finais de semana de casa cheia, de bolo de cenoura à tardinha, de risadas enormes por piadas que remetem ao tempo em que se falava “epa” para tudo.

Há quem dê combustível para discussões cansativas e desumanas, ancoradas no egoísmo e no total desacompasso com a ciência, em torno da inversão da prioridade: que os jovens, que mais se expõem ao vírus, sejam os primeiros a serem vacinados.

A galeria de nossos velhos com os braços ansiosos e apontados para a seringa que carrega a promessa de mais dias melhores é, por si só, argumento que pode abafar um pouco do pensamento restrito de quem ainda não entende o poder da diversidade para a harmonia do mundo.

Em tempo: Perder Contardo Calligaris é ganhar mais um imenso vazio de referências, de inspirações e de reflexões tão necessárias sobre nós mesmos e sobre os outros. Precisamos urgente de mais compaixão, de mais paixão e de mais gente protegida e protegendo.

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As perdas de cada dia https://assimcomovoce.blogfolha.uol.com.br/2019/10/16/as-perdas-de-cada-dia/ https://assimcomovoce.blogfolha.uol.com.br/2019/10/16/as-perdas-de-cada-dia/#respond Wed, 16 Oct 2019 05:30:06 +0000 https://assimcomovoce.blogfolha.uol.com.br/files/2019/10/earpared2-320x213.jpg https://assimcomovoce.blogfolha.uol.com.br/?p=3727 Mamãe me falou aquilo como se estivesse contando algum acontecimento frugal do tipo queimou o bolo de cenoura, derramou o leite. Contou como se fosse algo já esperado, natural, algo que não mudasse em nada a forma de conviver da família.

“Fui ao médico e ele disse que estou quase surda, que perdi 40% da audição. Até uma receita para um aparelho auditivo ele passou. Imagina, eu, nesta altura da vida, com aparelho auditivo. Não tenho mais nada para escutar, não. Já ouvi muito. Está tudo certo. Não vou colocar nada.”

Há algum tempo tenho notado que ela não conta mais aquelas grandes histórias do tio Calimério com o mesmo vigor, também tem me deixado no vácuo quando questiono ao telefone se o calorão deu uma trégua lá em Três Lagoas, mas daí a perceber que o escutador de novela dela estaria avariado não era simples de correlacionar.

É o preço da existência ir deixando pelo caminho um bocadinho de nós mesmos em dores, amores, forças, batalhas histórias, lágrimas e sentidos. A ciência tem cada vez mais ajudado a mitigar esse processo, mas é ilusão e bobagem achar que a completude estará ao lado até o último dia de um sonhado centenário.

Perder-se um pouco, deixar-se para trás, é processo diário, incontrolável e ligeiramente assustador. A sensação de ser “menos” a cada dia, de poder ter menos controle sob si mesmo dando espaço à atuação do tempo no corpo e na mente causa um certo desequilíbrio nas convicções de que amanhã o sol irá nascer, você irá se vestir, trabalhar, almoçar…

Por falar em desequilíbrio, ele é um dos pontos de preocupação da nova condição meio surda de mamãe. Deixar de entender completamente as piadas sem graça do Silvio Santos na TV é do jogo, mas perder parte de um sentido implica uma nova lógica cotidiana.

A falta do som pode colocar a pessoa em risco em casa e na rua, pode suscitar solidão —uma vez que você não entende tudo o que se passa em volta, a tendência pode ser a retração—, pode desembocar na acomodação de deixar para lá vontades que, para serem realizadas, exigiriam maneiras novas de fazê-las vingar.

Mas reconhecer que se está menos apto para determinada atividade é imprescindível para seguir realizando incumbências e para tocar o cotidiano de maneira íntegra, segura.

Quem sabe bem até onde os olhos alcançam pode lançar mão de óculos precisos para ir além, calibrar a atenção de maneira mais fina e avisar os mais próximos de sua condição peculiar.

Em vez do medo de atrapalhar os outros por nossas perdas, o ideal é ter coragem de dividi-las para que a empatia atue a favor, amparando, limpando rotas, compreendendo resultados, dando a dimensão correta aos resultados e expectativas.

Quando se aceita e se reconhece com calma e sabedoria uma perda de si mesmo —seja na mobilidade de levantar da cama sem esforço ao amanhecer seja na rapidez de raciocínio e presteza para abrir uma lata de salsicha—, fica mais tranquilo entender que uma condição não define ninguém e que podemos ser novas pessoas com uma frequência alucinante.

Ainda vou convencer mamãe a experimentar um aparelho auditivo —o apelo de ouvir as serenatas cada vez mais tresloucadas da neta ajuda bastante— e mostrar a ela que velhice não precisa ser um amontoado de consequências caras de uma jornada vivida. Pode ser também um sadio compreender de novas maneiras de viajar com mais bagagem e, ao menos tempo, menos roupas e compromissos.

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Os desejos dos velhos https://assimcomovoce.blogfolha.uol.com.br/2019/01/23/os-desejos-dos-velhos/ https://assimcomovoce.blogfolha.uol.com.br/2019/01/23/os-desejos-dos-velhos/#respond Wed, 23 Jan 2019 04:30:37 +0000 https://assimcomovoce.blogfolha.uol.com.br/files/2019/01/vocarlos1-320x213.jpg https://assimcomovoce.blogfolha.uol.com.br/?p=3477 Vó Nazareth, 80, saltou de paraglider, do alto de um morro, lá em Caraguá, no litoral paulista. Viu em outra perspectiva o mar, as ondas e a areia da praia. Experimentou o vento batendo forte no rosto e as emoções misturadas. Relou no dedo de Deus. Ela fez o que quis, o que deu na telha, o que tinha vontade.

Na realidade, ela não é bem minha avó, mas uma leitora de primeira hora que acabou se tornando amiga de toda hora. Cosmopolita, atualizada e inquieta, vó Nazareth me alerta diuturnamente que certas maneiras de interpretar a velhice estão em desuso, são démodés e cheias de estigmas.

Minha mãe vive reclamando de que eu e meus irmãos interferimos demais em seus desejos, que não consegue ser velha à sua maneira, realizando a seu bel-prazer suas vontades. Por ela, o sofá seria reformado a cada seis meses e sempre haveria uma nova reforminha na casa já mexida dezenas de vezes. Teria 13 cachorros. Jamais visitaria um médico.

Vó Nazareth, 80, se preparando para o salto, em Caraguatatuba Foto: Arquivo Pessoal

Parece que sempre a vontade de proteger, de evitar que o velho se exponha a riscos passa à frente de sua personalidade, tal qual a de uma criança indefesa e inconsequente. Mesmo quando há necessidade flagrante de amparo, seja pela condição física frágil, seja pela mente em desordem, me parece haver excessos ou pouco cuidado no tutelar dos mais velhos.

Mas há também avanços, exemplos inspiradores. Nesta semana, começou a ser propagado nas “internets”, como dizia o magistral Cony, um vídeo em que um homem de 91 anos conta sua experiência como aluno novato de uma faculdade de arquitetura.

Em dado momento Carlos Augusto diz assim: “Não sei quem foi que fez um comentário na internet achando que eu tô perdendo tempo. O tempo não é o dele, é o meu. Mas o meu que eu tô perdendo é aprendendo”.

Em outra situação, anos atrás, eu e minha mulher estávamos em Amsterdã, na Holanda, e escolhemos um bar superdescolado, na ponta de um canal, para tomarmos umas biritas. Enquanto bebericávamos um vinho qualquer, em um clima meio bucólico, na mesa ao lado, um casal de idosos se divertia como se não se houvesse amanhã, enquanto fumava um cigarrinho do capeta aparentemente muito prazeroso e libertador.

Claro que também é muito necessário que se compreenda que, às vezes, o velho quer apenas o prazer do tempo vagaroso, da companhia do gato, do silêncio das tardes de domingo. Embora a tendência natural seja ver apenas melancolia e solidão nesses movimentos, pode também haver desejo legítimo.

Desejo do corpo cansado que quer refúgio na cadeira da varanda vazia, desejo da cabeça fumegante que não quer pensar em nada. Desejo de se retirar das regras de ter sempre de fazer algo e deixar o sossego tomar conta dos poros.

O voo da vó Nazareth Foto: Arquivo Pessoal

É fundamental que haja mentes mais abertas para a compreensão e abrigo de uma realidade cada vez mais povoada por cãs. Assim como abertas devem estar as portas de universidades, de escolas, de academias, de baladas, de picos de salto de paraglider.

Mais que tudo isso, porém, é necessário ter maturidade para entender que os desejos dos velhos precisam, algumas vezes, do amparo do neto, da compreensão do filho, do apoio da sociedade, do trato do médico, da elegância de um vizinho.

Naturalizando a maneira como se relaciona com o velho –indistintamente perto de todos nós– sem eufemismos, exageros e empáfia, abre-se um caminho promissor para que toda diferença também faça sentido, também emocione e também seja apoiada em seus desejos e vontades.

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A velha na janela https://assimcomovoce.blogfolha.uol.com.br/2017/07/26/a-velha-na-janela/ https://assimcomovoce.blogfolha.uol.com.br/2017/07/26/a-velha-na-janela/#comments Wed, 26 Jul 2017 05:00:49 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://assimcomovoce.blogfolha.uol.com.br/?p=2968
Senhora observa a rua de sua janela, no interior do MA

Era apenas uma viagenzinha despretensiosa pelo interior mineiro, mas a imagem daquela senhora na janela, com o rosto já derretido pelo tempo, com as mãos aconchegando o queixo e com o olhar em um profundo nada ficou em minhas recordações. Uma mistura de sensação de solidão com um desgosto pela vagareza dos dias, do passar das horas.

Tempos depois daquela experiência, tenho a seguinte conversa com minha mãe, septuagenária:

– Tudo bem por aí, minha velha?

– Tudo na mesma, meu filho. O tempo parece que não passa aqui em casa. Os dias são tão longos, as noites mais compridas ainda. Fico num desassossego… Nada parece estar bom.

– Ah, mas a velhice também serve para descansar até cansar, né, mãe?

– Serve, mas é tempo demais. Por mais que eu invente coisas para fazer, sobram muitas horas à toa. Me dá um desatino, uma chateação.

Fiquei desconjuntado depois dessa prosa. Além da melancolia natural da idade, mamãe ainda tem amargado a falta de nosso cachorro velho, Nero, que morreu há pouco mais de dois meses, deixando um som da ausência quase desesperador em seu cotidiano. Seu coração sofre mais uma vez.

Mamãe é hoje como a velha da janela de Minas à procura de alento em passarinhos que vez ou outra saltitam por ali no chão e fazem shows por migalhas. Mamãe arrodeia por todos os lados as lembranças para tirar delas novas versões, nova graça, novos suspiros. Não por acaso, ela sempre reconta causos e ri deles com a graça de uma boa surpresa.

Não deu pé para que ela se preparasse para a chegada da tal terceira idade. Mal tinha tempo e disposição para programar o arroz com feijão do dia a dia, igual ao que acontece com a maior parte das mulheres trabalhadoras e provedoras de famílias deste país.

Minha velha não é dessas que conseguem se encantar com aulas de hidroginástica ao som de Anitta ou com bailinhos da saudade cheios de moça atrás de senhores abonados. Cansou-se até de fazer bolo, afinal menino não chega mais faminto grudando em sua saia pedindo chamego e comida aos finais do dia.

Por mais que eu reinvente os horários de ligar para casa, sempre tenho a sensação de que ela estava me esperando a postos e ansiosa para saber da neta, do frio que congela minhas pernas secas nessas noites invernais, dos meus planos para o final de semana, da rotina no jornal.

É bem possível trabalhar contra a inerência desse estado de desgosto da velhice. Há uns que compram uma motoca e viajam pelo mundo fugindo para novos pontos a cada encostar da tristeza, há os que se rebelam contra os efeitos da longevidade buscando novidades para o cérebro, para as rugas e para a alma.

De qualquer maneira, penso ser necessário o mundo trabalhar mais por menos momentos de angústia com o tempo para os velhos. Uma construção social que não sobrevalorize a velocidade, que torne os ambientes mais convidativos para os velhos, pode ser um caminho.

Experiências de comunidades de idosos, organizadas por eles mesmos, começam a ganhar fôlego no país, assim como iniciativas de acolhimento de empresas que querem a presença dos velhos para fomentar diversidade, valores humanos. Então, não é simplesmente uma questão de “coisas da vida”. Dá para ser diferente.

Entro em férias e vou descansar a beleza por uns dias. Volto em setembro!

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