O trem-bala e a sofrência

Débora, minha ajudante para todas as coisas aqui em casa, acordou cedo naquele dia. Estava ansiosa demais para aproveitar o sábado de descanso apenas dormindo um pouco mais que as minguadas horas de repouso dos dias de semana de trabalho. Ela tinha um sonho a realizar.

Ajeitou o café das quatro crianças, catou o marido e caminhou por cerca de meia hora a pé até chegar à loja de departamentos no centro do Campo Limpo, região periférica de São Paulo. Um calor daqueles, mas, ao menos, o trajeto era em descida.

Chegara enfim o dia de adquirir uma TV nova, moderna, que substituiria a antiga, ainda de tubo, que funcionava à base de algumas pancadas no alto da caixa com a força da mão. “Quando a gente dava uns murros, a imagem aparecia de novo.”

A animação de realizar o desejo era parente do medo de se frustrar, como havia acontecido dias atrás. A compra de um televisor barato, de 32 polegadas, a R$ 600, guardava a surpresa de que o aparelho não continha o controle remoto, não tinha pedestal nem estava embalado em plástico bolha. Era aquilo que estava em uma sacola mesmo.

Deu “sorte” porque foi possível cancelar o compromisso quando viu o estado do produto quase entregue. O custo foi o de uma choradinha humilhante ao ouvir da vendedora: “vender para pobre é assim mesmo”.

Mas a nova investida seria diferente. O encantamento tinha agora 42 polegadas e tecnologia para todo lado. Prestes a se aposentar, a vendedora deu a eles o maior dos descontos possível, talvez, porque soubesse bem de trens-bala, de sofrimento e de sonhos.

O casal rapou o que tinha e que teria em um futuro breve nos bolsos, mas e daí? Tudo por um gosto na vida. Não sobrou dinheiro nem para pagar um mototáxi. Cada um arcou com uma ponta da caixa, dividindo os dez quilos da TV, e rumaram para casa, agora, em subida.

Chegaram cansados, mas ainda juntaram a meninada no principal dos dois cômodos do barraco, fizeram pipoca e foram desfrutar da felicidade. “A vida passa rápido, seu Jairo. A gente precisa fazer essas coisas, mesmo com esforço, para desfrutar um pouco dela.”

Há poucos dias li um depoimento da Ana Vilela, a garota que escreveu aquela letra de música bonita que diz que a vida “é trem-bala parceiro e a gente é só passageiro prestes a partir” externando que está passando por um processo de depressão, que está difícil para ela a pressão do existir.

Ela desabafou dizendo ser muito duro enfrentar críticas severas ao seu modo de ser e a sua música. Declarou que é difícil para ela entender o ódio exalado pelas pessoas pelos esgotos cibernéticos.

Por outro lado, a cantora Marília Mendonça, morta de maneira trágica, fez das dores que foram se apresentando em sua jornada, o que ficou batizado de sofrência, o combustível para seu sucesso estelar, para ser amada por multidões, para embarcar na ideia do tal trem que ensina que é “sobre escalar e sentir que o caminho te fortaleceu”.

Para todos nós, existe a dualidade entre viver bem o agora, tendo consciência da brevidade dessa chance, e enfrentar as consequências da busca de ser feliz, de realizar, de ter, de sonhar, de se expor.

O que pode fazer, de fato, a diferença nesse claro e escuro, nesse partir ou ficar, é a maneira como os interlocutores agem diante da luminosidade.

Mais do que entender que o trem da nossa vida é veloz, é fundamental nos conscientizarmos de que podemos atrasar, tornar sofrida e afetar, com nossas atitudes, preconceitos e mazelas, a viagem dos outros.