Escute o seu velho
– Demorou pra ligar, hem? Achei que tivesse morrido. Esqueceu que tem mãe?
Fazia sentido a queixa e o tom de mágoa de minha velha. Havia quatro dias eu não telefonava, absorvido em demandas de todos os dias, apostando que a poupança emocional que tenho com ela jamais ficaria sem fundos, mesmo com saques sucessivos e poucos depósitos.
Mas o calundu de dona Marli tinha razões ainda mais profundas que a ausência do filho caçula. Mamãe havia caído no quintal de casa. Desequilibrou-se em meio a uma possível vertigem quase inevitável para os mais velhos durante as tardes do calorão sul-mato-grossense.
– Poxa, mãe. Doeu muito? Quem te ajudou? Como você tá se sentindo?
Ela estava sem humanos em casa, apenas com os dois cachorros, Fred e Bella, que entraram em desespero total quando viram a mãe atônita e estatelada no chão. Correram até o portão, latiram para a vizinhança, lamberam as feridas da dona ainda caída à própria sorte.
– Aqui no rosto ainda dói. Bati bem no toco daquela antiga goiabeira que podamos, sabe? – disse ela ao mesmo tempo que mostrava pela câmera do telefone uma imensa mancha roxa debaixo dos olhos e outra mais perto do queixo.
Naquele momento, entendi um pouco mais o tom ineditamente áspero do início da nossa conversa. Quando um velho cai ao chão, cai também um pouco de sua confiança, cai sua autoestima, caem as fichas do tempo que resta. Senti claramente que minha mãe estava carregando bem mais do que desconfortos físicos naquele momento. Ela queria tentar externar um lamento da alma.
– Acho que minhas costas se curvaram demais também e fiquei com uma dor chata na coluna. Também ralei o joelho. Fui me recuperando ali no chão mesmo, retomando as forças e me levantando. Tinha que reagir porque os cachorros estavam em pânico. Tô muito velha.
Durante uma tempestade dessas que a vida apresenta para a gente de tempos em tempos, com raios que ferem a alma, com trovões que abalam nossos silêncios interiores, com chuvas que remexem nossas seguranças, corri diariamente para o abrigo materno.
Ligava duas, três vezes por dia só para ter o conforto daqueles mantras tão bons, tão bons que só a mãe da gente é capaz de entoar: “Vai passar, filho. O tempo cura tudo. Vai ser para melhor. Pode contar comigo para o que precisar”.
O caminho de volta do aconchego parece ser tão mais longo. Acomodadas minhas lamúrias, por que a frequência das ligações cessou? “Filhos, melhor não tê-los?”
Minha colega colunista aqui da Folha, a genial e sensível antropóloga Mirian Goldenberg, me fez um convite e um apelo para esta Semana Nacional do Idoso, ou do velho, como preferimos usar com mais naturalidade.
“Jairo, vamos fazer um chamamento, uma campanha, dar um grito para que todos escutem os seus velhos. Eles precisam disso, eles precisam ser ouvidos, de preferência todos os dias.”
Não sou adepto dos bordões que culpabilizam a gente com a ideia de que abandonamos quem sempre fez por nós. Não acho que isso ajude a mudar comportamentos, mas sou favorável ao exercício de aperfeiçoar a empatia e o olhar sobre as diferenças.
O roxo dos olhos sempre desaparece. Os matizes de uma velhice sem eco para suas tormentas internas podem se perpetuar até que reconheçamos que dá para agir e atenuá-las de forma simples: escutando nossos velhos.