Entender as deficiências é também encarar suas contradições bem humanas

Há uma questão inerente ao debate de afirmação das pessoas com deficiência, que encerra em si algumas contradições: alguém pode defender que uma condição física, sensorial ou intelectual seja adotada voluntariamente? Alguém pode ficar exposto ao acometimento de uma perda que afetará o funcionamento do próprio corpo, da mente ou das habilidades por displicência ou por vontade própria?

Para exemplificar, é como pensar em cortar a própria perna para dizer que tudo bem usar uma prótese, deixar-se exposto a elementos que te levem à surdez porque se defende a causa de quem não escuta ou ainda não se vacinar contra alguma moléstia debilitante porque você nem liga para o que vier a acontecer e assume suas atitudes.

Pensar em botar-se numa situação incontrolável, cujas consequências podem ser bem mais graves que a imaginada, remete a um absurdo completo e pode expor o vivente à dor, à loucura total e até à morte.

Conhecer os efeitos de uma deficiência credencia tanto para a defesa de um modo de ser, de interagir e de estar vivo como também para a ciência de que ninguém precisa passar pela mesma experiência para entendê-la, respeitá-la e defender outras formas de estar no mundo.

Mas, caminhando um pouco mais profundamente nesse debate, há ainda desafios de entendimento em torno do pensamento daqueles que optam, por exemplo, pela não adesão à tecnologia porque ela confrontaria a aceitação de um modo de ser e de se sentir feliz do jeito que se é.

Mais brasa? Imaginemos uma pessoa que carrega em si uma herança genética de uma síndrome rara e decide ter um filho de maneira natural, sem manipulação genética, porque, para ela, repassar sua essência, em todos os sentidos, é um direito e representa uma forma totalmente plena de dizer que abraça a multiplicidade humana.

Por outro ângulo, suponhamos que alguém sem nenhum indício de alteração em seus genes tome conhecimento que está gerando um embrião que guarda uma diferença marcante qualquer e opte, defenda e festeje a vinda do bebê com todas suas características peculiares.

A força da identidade da pessoa com deficiência emana da justa forma de compreender que há dilemas que podem provocar reflexões sobre essa condição, diferentemente de outras manifestações da diversidade como raça e gênero, que se afirmam em si mesmas.

Uma pessoa com autismo ou uma pessoa com síndrome de Down age, se manifesta e é do jeito que é, e a sociedade precisa urgentemente enfrentar o tal viés inconsciente de querer que esses grupos ajam como se não tivessem características que os fazem ser, agir, pensar e ver o mundo de maneira fora do senso comum, e está tudo bem!

Eu não preciso ser como um “andante”, posso me considerar muito bem em minha forma cadeirante, mas não preciso achar que essa condição deva ser experimentada pelos outros, que os outros “sintam na pele” a minha maneira de atuar, de ser cidadão e ser feliz.

Em setembro, celebra-se uma série de datas que visam dar mais visibilidade a demandas de surdos, cegos, tetraplégicos, paralisados cerebrais e outras centenas de títulos que nomeiam diferenças da carcaça, da cachola e das sensações. Ganhamos todos ao aprofundar debates que ajudem a incluir mais o outro e suas tão humanas contradições.