Uma história de leões, de uma menina, de um cadeirante e de uma bicicleta
Me deu até arrepio nas partes quando minha menina, mais feliz que porco na lama, disse que queria passear de bicicleta lá pelo condomínio com a melhor amiga. Quando um cadeirante, como eu, precisa carregar uma sacolinha de supermercado a emoção é certa. Então, ajudar uma criança de cinco anos com uma bike, é história para não esquecer jamais.
Para me ajudar —afinal, miséria pouca é bobagem—, o veículo estava guardado num cômodo do apartamento onde ou se respira ou se pensa. Fui puxando a danada pela parte traseira enquanto me equilibrava na cadeira de rodas. Minha filha, Biscoita, só incentivava: “Vai logo, pai! A Lou tá me esperando”.
Terminada a primeira parte, faltava pouco. Era só enfiar a bicicleta no elevador, cruzar o estacionamento, subir uma rampa, equilibrar minha menina sobre as rodas, prestar atenção no percurso, tocar a minha cadeira de rodas, dar boa tarde a quem passava, dar apoio moral para ela pedalar com firmeza, observar os obstáculos do caminho e segurar na mão de nossa senhora da bicicletinha para que tudo saísse bem.
Ah, ia me esquecendo de considerar que também tinha de passar álcool em gel em tudo e ficar ajeitando nossas máscaras no rosto.
Meu grande amigo Alex tem uma frase ótima em relação à realidade de pessoas com deficiência.
“Se você, serumano comum, precisa matar um leão por dia, nós, os aleijados, precisamos matar a alcateia toda”.
Elis caiu quatro vezes. “Tudo bem, pai. Foi só um tombinho, nem machucou”. Meu coração, durante a jornada, deve ter caído no chão umas mil vezes e a de conviver com algumas cicatrizes.
“Difinitivamente”, como diz minha tia Filinha, não é fácil ver sua cria depender de forças que você não tem nem nunca terá. Para sobreviver, é preciso buscar na mente e no amor uma energia para tocar a bola, para empurrar, do jeito que dá, a bicicleta e a cadeira de rodas.
Por mais que eu imaginasse desafios para a paternidade “malacabada”, estar diante de uma criança no auge de sua infância feliz em contraste com minhas limitações é um desafio emocional um tanto angustiante em alguns momentos. Ainda mais sozinho. Eu e ela.
E não há vitimismo nenhum nisso. É realidade. A vida é adaptável sempre, mas é preciso tempo e muito ajuda da aldeia para que o tambor ecoe um som tranquilo, acolhedor e que passe sensação de segurança.
Ela deve ter dado umas três ou quatro voltinhas com a bike e a encostou num gramado, só para facilitar para eu guinchar depois. Foi para o balanço onde um vizinho gente boa a empurrou até quase tocar o céu, até quase tocar minhas mãos que acompanhava a brincadeira a alguma distância.
“Tá gostoso demais, pai!”, gritou a menina, que se desequilibrou, mas ligeiramente se agarrou na corrente do balanço e evitou novo tombo. Crianças tem anjos atentos, a minha deve ter uma legião de prontidão.
Nos enfrentamentos da alcateia pelas pessoas com deficiência, se não há obviedade nisso, por mais que consigamos acalmar um ou outro leão, haverá sempre uma mordida aqui, um grande arranhão ali e um bocado de cansaço no final do dia.
E, mais, sempre sobrarão felinos prontos para digladiarem novamente contigo.
Para minha sorte, a aventura da bicicleta terminou numa noite tranquila, com minha leoazinha dormindo sossegada e se recuperando para mais breves aventuras em seis rodas ou em doze, afinal, ela já tem me pedido um par de patins. Poupe-me, coronavírus.