Prepare o coração, depois o braço

Um banho de otimismo e de esperança tem sido dado em parte dos brasileiros nos últimos dias, desde o momento em que agulhadas começaram a ser distribuídas pelo país com o líquido “sino-butantânico” que carrega, além do potencial bloqueio dos estragos da Covid-19, a abertura de um novo tempo que tanto se aguarda.

Sou uma das mais ativas pollyannas deste periódico e sinto também que se avizinha o momento de podermos engatinhar por alguma liberdade fora da enlouquecedora mesmice de nossa casa, mas, antes disso, acho que é preciso pensar que a travessia pandêmica ainda vai exigir muito neurônio frito, muita lágrima, muito aperto e, também, um bocado de coração espremido, inquieto e, infelizmente, dilacerado.

Antes de falar sobre a imunização e seu impacto, será necessário, para parcela significativa das pessoas, saber como se terá o básico diante do desemprego desenfreado, da inflação desperta, da ausência de mãos aparadoras do poder público.

A realidade econômica que já se impõe no despertar de 2021 dará contornos de crueldade às imagens e desaforos pandêmicos que se engolem dia após dia. A solução que amenizará o quadro é, novamente, aquela que invoca os valores mais nobres e engajadores do “serumano”: solidariedade, empatia, compaixão.

Mais pessoas ficarão expostas à fome, à reacomodação de sua tranquilidade de viver, à impossibilidade de escolha, à resignação ante o pouco que houve, se houver.

Em outra vertente, há o tranco emocional para os muito ansiosos —o que é justo— em receber a vacina. O imunizante está sendo aplicado a conta-gotas aqui e ali e a ação vai gerando uma expectativa legítima de que, logo, quem mais precisa estará protegido.

A conta é mais simples e dura do que gostaríamos de anotar no caderninho a esta altura dos acontecimentos. O que existe hoje de vacina é para o básico do básico. Não vai dar para chegar, em curto prazo, para o avô guardado há 11 meses, para a tia velha do Paraná que não aguenta mais ouvir falar em confinamento nem para o amigo sessentão que espera há meses para curtir uma aglomeraçãozinha.

Neste momento, o ideal é que entendamos que, pela incompetência em escalada das autoridades federais, vamos, aqui no Brasil, criar a fila das prioridades entre as prioridades. É preciso dar chances maiores de sobrevivência, primeiramente, àqueles que mais atuam para evitar as mortes. Parece algo como tirar água do oceano com uma colherzinha de café, por enquanto, é o que temos.

Estarmos bem cientes do tamanho de nossos desafios e enroscos ajuda a programar melhor a mente para mais pressão, mais espera, mais doses de angústia. Não ajuda em nada embarcar na propaganda de que entramos na corrida —descansos—, de que temos vacina no quintal —negociada a duras penas e, como penas, voando—, de que começamos a caminhada para o fim. A verdade é que mal chegamos ao começo. Ainda estamos falando de oxigênio.

Enquanto nações já colhem resultados de uma rápida imunização e pensam no impacto do pesadelo das “mutações do vírus”, temos de pegar um copo de água para não nos afogarmos na poeira da história.

O otimismo, a fé, a perseverança e a espiritualidade —não dá para apostarmos apenas na razão a esta altura— são elementos indispensáveis em momento de tantas dores. Não vamos adotar a bandeira da derrota, mas reconhecer que estamos distantes da possibilidade de uma festa só vai fortalecer nossa resignação para não embirutarmos de vez com a verdade das coisas.