Decisões confinadas

A pandemia tem feito muita gente botar a viola no saco e tomar novos rumos de vida. Por opção ou por força dos acontecimentos, há transformações da maneira de como levar a carcaça à frente por todos os lados.

Por onde se atenta, tem gente abandonando a “cidade grande” rumo à tranquilidade promissora do interior, casais decidindo se separar porque descobriram que a vida a dois não tem nada a ver, pais tirando as rodinhas das bicicletas das crianças porque elas precisam se virar mais rapidamente no dia a dia.

Há também os donos de restaurante que enveredam para o setor de flores para ver se embelezam um pouco a feiura desses tempos e os velhos que desistem de olhar para fora, para o futuro, por pânico de se defrontarem com um vírus.

Às vezes, a única opção de sobrevivência, de fato, é buscar uma maneira de tirar o pescoço para fora da água à procura de ar fresco, dar um solavanco para animar a mente, o corpo e a disposição para que se esmerem em encontrar fios de esperança.

Mas é certo que também há casos em que a pressão de nossas ansiedades, das dores internas, das nossas instabilidades sentimentais, dos medos trancafiados é o que acaba por nos empurrar para encruzilhadas sem que nos preocupemos ao menos em olhar para os lados, todos os lados.

Se antes a gente ia ao boteco com grandes amigos para purgar as emoções, ia respirar na montanha para elaborar ideias, recebia a ação de várias interferências antes de nossas escolhas, agora, com a realidade pandêmica, as referências para pensar em qualquer mudança estão completamente diferentes, restritas.

Confinados, o deparar-se com as mesmas paredes, os mesmos porta-retratos faz com que tenhamos menos chances de nos inspirar, menos possibilidades de espantar as nuvens carregadas com cores e vibrações do mundo lá fora, das diversidades inovadora de lá fora.

A cantora Lia de Itamaracá, 76, em quarentena em Ilha de Itamaracá (PE) Foto: Arquivo pessoal

Confinados, os nossos problemas são sempre os maiores —é difícil nossos amigos quererem desabafar pelo Zoom—, nossos conflitos são insuportáveis, nossas urgências podem ser irremediáveis.

Até nos adaptarmos a esse mundo e suas impostas dimensões e restrições, será natural —e, talvez, perigoso— nos perdermos dentro de nós mesmos, de nossas dúvidas, de nossas demandas, de nossos desafios.

Evidentemente não podemos, muitas vezes, conter o ritmo dos fatos, assim como não há reza que pareça abreviar as consequências da devastação do vírus que vão chegando à nossa realidade e aumentando a pressão por atitudes.

Dessa forma, somos levados a agir do jeito que dá.

O que dá é para recalibrar a forma e a frequência de buscar o ar, dá para ficar atento ao nível de nossa resiliência, dá para esgarçar tradicionais limites de tolerância, de insatisfações e de pressões suportadas.

A não atenção a isso, o ignorar o fato de que estamos num tempo muito particular da humanidade pode pôr a perder valores, amores, sabores, histórias, heranças que careciam de mais parcimônia em suas alterações de curso, de mais delicadeza em seus rearranjos.

Mudar, fazer acontecer, realizar, tomar atitudes são, sim, maneiras de trazer novos ares e abrir-se para perspectivas mais frescas, irrigando a mente de força e dando espaço para que se pense de forma diferente as mesmas questões e dilemas.

Tudo isso, porém, passa pelo cuidado em redimensionar a realidade, hoje mais restrita, mais obtusa e envolta num clima de inconsistências que levará tempos para ser devidamente compreendido.