Evolua!

Se haverá algum saldo positivo neste ano, é bem provável que venha a ser o aparecimento de um tempo, antes escamoteado pela rotina, de olhar para si e de refletir sobre as tantas demandas do mundo lá fora e do papel de cada um diante delas. Espaços para praticar o autoconhecimento estão abundantes, assim como não faltam canais para ajudar a abrir o pensamento para maneiras menos individualistas de praticar o viver.

O planeta somou 1 milhão de histórias perdidas por um vírus e as dores disso oprimem o planeta. O Magazine Luiza foi enxovalhado por abrir a mente e uma turma de talentos só para pessoas negras e fincou o pé na ideia de transformação.

O humorista Léo Lins virou o mais novo alvo da fúria da comunidade de pessoas com autismo. Devido a mais uma “piada”, está sendo engolido vivo nas redes e luta gloriosamente para ser entendido, quiçá desculpado.

Uma mulher que rebolava em um carro conversível, de biquíni, no Leblon levou uma garrafada de outra mulher que, aparentemente, se incomodou com tamanho frescor de ser. Tenho visto mais sororidade que deboche nesse caso.

Em todas as áreas, com as mais diversas motivações, nos mais distintos aspectos sociais, novas maneiras de pensar e de querer mudanças não param de aparecer, sobretudo em um tempo que nos faz agonizar com suas incertezas, que impõe urgências de aperfeiçoarmos nossas relações e espaços.

Ninguém é obrigado a sair rasgando as roupas pela rua em defesa das liberdades —de respeito, de entendimento, de ampliação da forma de ver as mesmas coisas— nem precisa acender uma vela pedindo proteção contra o que considera libertinagem alheia, mas evoluir é preservar-se. Tentar compreender, mesmo que em partes, para onde a humanidade se encaminha igualmente ajuda na autopreservação.

O autoconhecimento, a autocompaixão, a autoanálise, o autocontrole, a automotivação, com ou sem auxílios literários, de gurus e de dores íntimas, foram amplamente estimulados em todos durante os meses de confinamento.

E vai ser preciso que se botem em prática muitos desses “autos” para que consigamos compreender, respeitar e aprender com esse prometido novo momento que se avizinha. As pessoas estão voltando às ruas —ou ao menos espiando, aos poucos— depois de mergulhos internos transformadores, reveladores, e vão querer manifestar-se de outras formas, querer novos espaços e defender como nunca que se avance no pluralismo de ser feliz.

Todos os isolados, em alguma dimensão e em algum momento durante a pandemia, pensaram a respeito de suas escolhas, suas dores, suas infelicidades, suas brutalidades, seus freios, suas ignorâncias e seus anseios. e vão externar, no convívio, uma hora ou outra, essas demandas, vão querer manifestar mudanças e clamar por mudanças.

Evoluir é tanto conseguir dar a si novas oportunidades de pensar de outra maneira como também ter tolerância e empatia para os desejos e inspirações dos outros.

O represamento e o sufocamento históricos de aspirações de mais igualdade, de menos preconceito, de mais aceitação, de menos intolerância, de mais colorido, de menos sofreres solitários tendem a virar uma onda gigante de exteriorizações.

Reabrir-se exatamente como se era antes —nas relações, nas interações e na defesa de pontos de vista— parece manobra que, embora legítima, será combatida com a mais aguardada vacina: a que vai imunizar a humanidade contra o conservadorismo acrítico, que obscurece a possibilidade de rever os próprios valores.