O novo sentido de “tudo bem com você?” em tempos de quarentena

– Seu Jairo, tem uma entrega de comida aqui na portaria para o senhor.

– Mas eu não pedi nada, não, Ana!, respondi ao interfone à funcionária do prédio.

– Ah, o rapaz da moto tá dizendo que mandaram para o senhor mesmo.

Não sabia, mas está na moda enviar para quarentenados surpresas culinárias, docinhos, drinques e outras pequenas delícias com potencial de dar assunto diferente ao dia, para quebrar a pasmaceira de ficar o tempo todo enfiado dentro de casa.

Mais do que isso, penso que essas entregas inesperadas são maneiras atuais de perguntar com carinho —e sem o embaraço de receber uma resposta muito penosa, atravessada— “Tudo bem com você?”.

O clima generalizado é de enfado com a rotina enclausurada, de angústia com perdas de pessoas próximas ou que ficaram próximas com relatos nas redes sociais, nos jornais, essa rotina de incertezas com o futuro que grita por atenção.

Estamos em uma espécie de transe emocional coletivo que pouca força tem restado para lançar mão das sempre valiosas frases de efeito “Deus é mais!”, “Tenha fé” ou “Até uva passa”, quando alguém nos aciona com uma resposta inescapável do tipo “tô sofrendo demais com tudo isso. Você me ajuda?”.

Em poucos momentos recentes acionamos tanto os amigos e parentes para perguntar se “está tudo bem”, se estão se protegendo direito, se estão batendo panela.

Igualmente, em poucas situações, ficamos tão sem palavras e ações para motivar alguém para a chegada de dias melhores, afinal, nosso pajé não tem fé, nosso curandeiro não entende nada de ervas e nosso cacique resolveu se trancar na própria oca e proteger apenas seus curumins.

Não há dúvida de que a falta total de lideranças que nos guiem para uma saída menos pesarosa desses dias de consternação constante faz com que tenhamos mais necessidade ainda de saber a respeito da saúde dos outros e menos preparo para enfrentar pedidos de socorro, mesmo que seja por um afago, uma generosidade.

As discrepâncias de como se enfrenta a pandemia são óbvias no Brasil, diante de suas desigualdades assustadoras, mas há um certo fio condutor em nosso enfado, em nossa sensação de desânimo, em nossas rusgas com quem pensa diferente. Ele me parece óbvio, ele é nossa aldeia desgovernada. Mas sermos brasileiros também nos credencia para viabilizar saídas na escuridão.

Mandamos tortas delicadas pelo motoboy para a casa dos nossos amigos, compartilhamos piadas, mandamos fotografias com os cabelos sem corte. Estamos, talvez, mais calados, mais arredios, mas jamais seremos totalmente omissos.

Parte da turma do Mundo Bita Foto: Divulgação-reprodução
Fiquei encantado com um vídeo infantil do Mundo Bita, que começou a circular há um mês. Para fazer algo diferente, o criador da animação, Chaps Melo, chamou uma orquestra sinfônica para regravar Fazendinha, um de seus clássicos entre os pequenos.

Com cada músico tocando dentro da própria casa, a canção foi ganhando felicidade, força e dando aconchego em adultos e meninos. “Lá na Fazendinha é manhã. Deixa de manha e vem para cá, que o sol raiou e é hora de acordar.”

Fecho esse delírio frisando que precisamos ser firmes e continuar oferecendo o “tudo bem com você” a todos os que cruzarmos e quisermos bem.

Deixar de se importar minimamente com os outros pode ser o nosso derradeiro adeus à esperança de que os dias venham a ser melhores, de que amanhã venhamos a perguntar com o peito tranquilo: “Tudo bem com você?, para em seguida acrescentar. Se não estiver, saiba de antemão que estou aqui para ajudar.”​