Pandemia chega ao coração caipira e festas juninas já são reinventadas

Tia Dé foi ensinando às crianças os passinhos, como se estivesse em gravidade zero, bem devagar e detalhadamente, ao ritmo de “São João, São João, festa boa é São João/ Vamos ralar o coco, vamos mexer a canjica/ Festa boa é São João”.

De canto de olho, fui acompanhando milha filha biscoita, que, em sua aula online, tentava imitar a coreografia vinda da tela do computador.

Quando achei que minha surpresa maior tivesse sido assistir a um ensaio de quadrilha virtual, lá veio tia Dé, a professora de balé, dar a notícia completa: “Depois de tudo ensaiado, vocês vão vestir seus trajes caipiras e vamos fazer uma festa junina pelo vídeo, cada um na sua casa. Vai ficar muito lindo.”

É verdade. A pandemia do coronavírus chegou ao coração da cultura caipira e sertaneja do Brasil, afetou diretamente o “anarriê”, os “arraiás” e as quadrilhas.

Festas juninas de todo o país estão sendo canceladas ou rearranjadas para evitar, conscientemente, que mais gente padeça com a insociável Covid-19.

Contação de história Origem das Festas Juninas Foto: Divulgação

“Pai, já que não podemos sair, vamos fazer a fogueira aqui na sala, né? É só juntar uns gravetinhos e botar fogo.”
Minha menina aceita o isolamento, mas reage terrivelmente quando o lúdico da vida não se apresenta de alguma maneira.

A questão doméstica a gente tende a dar um jeito com pipoca, milho verde e bandeirinhas dependuradas pelos quatro cantos da casa, mas uma ferida na tradição de escolinhas, igrejas, caruarus e joões pessoas ficará exposta por muito tempo como mais uma memória ingrata deste momento do país e do mundo.

Não tenho dúvidas de que, em todo canto, vão querer inventar significados novos para os festejos juninos, com gente arrastando pés usando e máscaras no rosto, gente mantendo “distância segura de dois metros” para a formação do caminho da roça e molecada fazendo guerras de álcool em gel, mas o sentido da confraternização ficará bem afetado.

Farão muita falta os pares colados e desajeitados, com roupas remendadas, seguindo rumo ao engraçado casamento, e as mãos dadas, formando arcos, para a realização do túnel de braços e abraços.

Para muitas famílias, sobretudo as que vivem em pontos protegidos da multiplicidade por vezes caótica das manifestações artísticas de grandes cidades, as festas de São João, São Pedro e Santo Antônio são aguardadas com ansiedade e celebradas com emoção genuína.

Os festejos são refúgios tão importantes quanto o Carnaval contra a mesmice dos dias. Servem para dar algum frescor ao peso da lida dura do trabalho e para celebrar o campo, para lembrar que jecas-tatus ainda resistem em todo o país atrás de melhores condições de vida e de acesso ao básico.

Fazem bem os colégios em tentar criar meios de aproximar as crianças dessa tradição, mesmo sob condições tão adversas.

Vale fazer bolo de milho remotamente, cada um em sua casa, vale brincar de pescaria em aplicativos de celular.

Também as lives sertanejas poderão aquecer memórias do campo, guardadas em muitas histórias de avós e tios caipiras. Tudo é alento para minimizar perdas tão cruéis deste tempo estranho.

Lanço mão, mais uma vez, de versos de Luiz Gonzaga para adornar esta reflexão junina: “Olha pro céu, meu amor. Vê como ele está lindo”.

É uma aposta firme na esperança de que, no horizonte, morem dias de mais dança, dias de foguetes que levarão para bem longe todas essas nossas agruras pela carência de não poder fazer o balancê ao lado de nossos bem-querer.