No mundo dos mascarados, temos de fazer sobreviver sorrisos

Quando via pela TV cenas do mundo asiático em que centenas de pessoas circulavam pelas ruas usando máscaras e mal trocando olhares umas com as outras, tinha uma sensação imensa de desconforto, estranhamento diante daquela situação, que me parecia tão exótica.

Como era possível tamanha deselegância humana? Como ter restrições a comungar do mesmo ar, de se ocultar de distribuir um sorriso matinal às crianças ou mesmo de provocar um efeito de bando com um bocejar ao final da jornada, à noitinha, no metrô?

Assim como a canção “No Dia em que a Terra Parou”, do Raul, se fez real por quase todo canto —de certa maneira, pois, por aqui, o Bolsonaro saiu para atrapalhar—, também as máscaras deixaram os centros cirúrgicos, as esteiras de catação de produtos recicláveis, as fábricas de produtos químicos para estarem aqui, no rosto da minha sogra e no queixo do meu sogro.

Agora, os mascarados não estão apenas no Congresso ou no campo de futebol disputando partidas apertadas. Estão nas filas da Caixa atrás de dinheiro emergencial e no salão de beleza, tapando o batom vermelho recém-rebocado.

As máscaras ornando a sociedade impõem a reinvenção da simpatia e projetam para o olhar toda a responsabilidade de dar as boas-vindas, de expressar tensão e até de seduzir.

O branco dos olhos terá de fazer a vez do glamour dos dentes alvos e convidativos. A língua que passeia pelos lábios, abrindo alas para algo ou alguém apetitosos, entrega a responsabilidade à menina dos olhos, não cabendo aqui nenhuma alusão criminosa, “fafavor”.

E como fica o exibir das janelinhas dos pequenos, que não terão mais entrada para contar toda a fascinação da visita da Fada do Dente? Como fica aquela risadona frouxa de gente que, todos os dias, levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima?

A boca torcida e nervosa na hora de pedir um aumento dá a vez aos dedos das mãos, espremidos e espichados. Do outro lado da mesa, a boca que ergue levemente o canto dos lábios, entre o deboche e a preguiça, terá mais trabalho para dar seus sinais de desaprovação.

Também os surdos oralizados —aqueles que conseguem ler, prodigiosamente, as palavras que saem das bocas, mesmo sem ouvi-las— estão em busca de adaptação ao mundo mascarado. Opções com transparência estão sendo testadas, mas, mesmo assim, lá vão os olhos, quiçá ondas telepáticas, assumirem novas funções. Não duvido, jamais.

Dou uma pirada quando penso em quão desafiador será para os pintores da natureza retratar famílias mascaradas num domingo no parque quarando ao sol; o carão de modelos andróginos num desfile da moda de verão, a competição de cantores mirins sem a graça de vê-los se esgoelar, com aquele close na goela.

Pela sobrevivência, pelo próximo e para que o mundo não pare ainda mais, lançou-se mão de mais um acessório com força de nos apartar, nos inibir e nos transformar. Vai depender da inventividade humana e do poder imensurável da criação de novos caminhos para fazer as mesmas viagens e não enclausurar intensos sorrisos.

Ao fim da canção de Raul Seixas, ele acorda quando percebe que tudo parou. Ele reconhece o transe que se vive quando tudo está em movimento. Quem sabe, no dia que pudermos nos desnudar das máscaras, venhamos a entender de maneira inversa a reflexão de Raulzito.

Compreenderemos a complexidade e o aconchego que o simples bailar despretensioso de lábios é capaz de ter e de impactar em toda vida.