A difícil arte de poupar as crianças da dureza desta pandemia
Coelhos de Páscoa encharcados de álcool em gel, máscaras de proteção que encobrem sorrisos banguelas, um bichinho maldoso que aparece mais nas internets do que os vídeos animados do Bita —personagem infantil que a molecada ama e que canta todas as canções.
Não está simples tentar anemizar um pouco para as crianças a dura realidade do confinamento, que as aparta dos amiguinhos, da escola e dos avós. Que toma delas os parquinhos, a fofura da terra dos tanques de areia e as coloca para observar pela janela um mundo parado.
Com mais instrumentos de comunicação à mão, não é qualquer brincadeira lúdica que afasta os pequenos dos pensamentos e das informações que têm atormentado o cotidiano e qualquer possibilidade de planos mais avançados dos marmanjos.
Meninos e meninas de hoje, rapidamente, captam que a vida não está tão bela como a pintada no filme de Roberto Benigni e que o caçador pode não chegar ao primeiro grito de socorro de Chapeuzinho Vermelho.
Em um fim de semana, numa ida cautelosa ao mercado para comprar o básico, fiquei com minha filha biscoita, de quatro anos, no carro, enquanto mamãe encarava as prateleiras de arroz com feijão e enfrentava eventuais gotículas da coisa ruim potencialmente circulando em todos os cantos.
Não sou (muito) folgado, não, e muito menos pouco gentil. Sou cadeirante —sempre há leitores de primeira viagem, que não sabem disso— e minha mulher vem resolvendo as coisas com mais agilidade, o que tem sido fundamental no momento.
Depois de pouco mais de 15 minutos de espera, Elis já começa a externar uma inquietação atípica.
“Papai, por que a mamãe tá demorando tanto? Ela precisa vir logo para estar mais protegida do coronavírus.”
Aqui e ali, tenho colhido depoimentos de pequenos que rezam pela cura do mundo, que pedem clemência à humanidade quando veem estrelas cadentes e que batem longos papos com anjos pedindo auxílio para convencer o coronavírus a ficar mais bonzinho com os mais velhos.
Crianças não são tolas, não são seres desligados da realidade, mas as nossas estão levando para suas histórias futuras um duro momento de restrições e de impactos emocionais, sociais e econômicos que seria “maraviwonderful” tentar fazê-las pensar não ter passado de um sonho estranho.
Para complicar ainda mais o processo aqui em casa, Uni, apelido do nosso peixe-beta chamado Unicórnio, que, embora macho, Elis trata como fêmea —e viva a pluralidade de ser!— resolveu bater as botas.
Com tanto assunto complicado para lidar, resolvemos que não era hora de nossa pequena ter de enfrentar a perda de sua peixa.
Em uma missão secreta, “enterramos” Uni e a substituímos por outra, com uma leve diferença na tonalidade das escamas. A antiga era azul, a nova é vermelha.
Biscoita ficou entre a surpresa e o riso com o processo camaleônico de seu bicho. Explicamos que Uni deveria ter ficado nervosa com essa situação toda do planeta e resolveu botar uma roupa nova.
A menina, como se entendesse que, algumas vezes, os adultos lançam mão de conversas estranhas e viajantes para explicar momentos complexos do dia a dia, sorriu grande e com encantamento diante daquela abrupta mudança.
Em uma situação tão complexa como a de agora, resguardar os pequenos é pura arte de calma e imaginação. Mas é missão fundamental tentar poupar as crianças, pois elas não hesitam em nos poupar.