Ao falar que vai à ONU ‘nem que seja numa cadeira de rodas’, Bolsonaro desvirtua condição de pessoa com deficiência
O presidente Jair Bolsonaro e sua groselha discursiva já ocupam parte importante do noticiário e reluto em reservar espaço também nesta coluna a ele, mas desta vez, eu e minha trupe “malacabada” fomos os chamados para repercutir sua prosódia cacarejante.
Disse o mandatário, no começo da semana: “Eu vou comparecer à ONU nem que seja de cadeira de rodas, de maca. Vou comparecer porque eu quero falar sobre a Amazônia, mostrar para o mundo com bastante conhecimento, com patriotismo, falar sobre essa área ignorada por tantos governos que me antecederam”.
O contexto é que a próxima reunião das Nações Unidas está marcada para 20 de setembro, em Nova York, nos EUA, e Bolsonaro irá passar, nos próximos dias, por mais uma cirurgia reparadora em consequência da facada que levou no bucho no ano passado.
Possivelmente, até a segunda dezena do mês, época do evento, o presidente ainda estará em recuperação, mas não pretende perder, sob nenhuma hipótese, a oportunidade de falar “ao mundo”, ainda que isso seja feito em situação que ele entende penosa.
Ainda falta um queijo e uma rapadura para que a sociedade consiga entender adequadamente a dimensão do caminhão de abacate podre despejado sobre um cadeirante, uma pessoa com restrições motoras, quando a autoridade máxima de um país iguala um instrumento de acessibilidade e inclusão, determinante para a liberdade de milhares de indivíduos, a um martírio ou um castigo imposto a desgraçados em desordem com o bem-estar.
Reconheço que as deficiências guardam relações com aspectos de fragilidade médico-ambulatoriais, que o povo quebrado passe parte de suas vidas em uma jornada por reformar o esqueleto, os sentidos e a cachola, mas nada disso pode suprimir o entendimento da adversidade física, dos sentidos, do intelecto como uma condição humana digna, legítima e de direito.
Enquanto se vê o avanço, mesmo que deveras tardio, da compreensão das liberdades de gênero, do reconhecimento das posições machistas nos mais diferentes campos, e das posições racistas entranhadas em todas as esferas sociais, a pessoa com deficiência tem sido ligeiramente deixada de lado no debate de um novo mundo.
Aceitam-se com pouco protesto o desvirtuar da real condição dos autistas para uma suposta condição de anjos indefesos com potenciais de gênios dignos de séries na TV ou o aparecimento de pessoas com deficiência na mídia em situações que guardem relação apenas com a assistência social.
Também é preciso acionar os alertas contemporâneos das injustiças sociais sobre o modo de representar, apresentar, retratar e se portar diante um ser atípico em suas formas de andar, falar, ver, sentir e estar presente.
Em uma cadeira de rodas fui à escola, caí na rua, levei fora, fumei maconha, fui tragado pela discriminação, fui beijado de amor, empurrado por qualquer um, deixado para trás por vários, passei no vestibular, escrevi textos lido por milhares, fui carregado e rasgado por centenas, levei compras no colo, levei namorada no colo, levo minha filha no colo, levo a vida, a vida me leva. Tudo em paz, tudo certo.
Também seria tranquilo ir à ONU, ser presidente ou botar fogo na Amazônia.
Qualquer vulnerabilidade minha —e de uma porção de outras gentes— não é necessariamente fruto de um acessório, mas, sim, de meu caráter e do confronto de minha imagem, de meu jeito com o ambiente, com o outro, com o meio que exclui ou inclui.