Ser pai é padecer na zona norte
Já faz um ano, mas sempre que visito aquela imagem, aquela sensação, é como se a mesma erosão que senti no peito fosse reaberta. Elis estava mais empolgada que Alice escorregando pela toca do coelho com a festa do Dia dos Pais na escolinha. Eu, que prevejo roubadas com quilômetros de antecedência, sentia que haveria alguém, em algum momento, gritando “cortem-lhe as cabeças”.
Como era o “meu momento exclusivo com biscoita”, minha mulher deu no pé rapidinho de toda aquela maravilha formada por homens desengonçados com seus pequenos alucinados para apresentar a serenata tão ensaiada. Mas, em um dia “todo especial”, não bastaria ouvir a cantoria. Havia uma programação completa me esperando e me desesperando.
“Agora todos os pais com seus filhos se dirijam à quadra de esportes. Vamos fazer um aquecimento bem legal com uma aula de kung fu”, gritava a coordenadora pelo pátio.
Minha menina saiu qual um foguete para o local da atividade, alegre e com entusiamo de coelho saltitante. Respirei fundo, roguei a nossa senhora da bicicletinha para que me desse acessibilidade no caminho, e fui atrás.
Não dava para entrar na quadra, que tinha uma rampa ingrime usada, geralmente, por quem não precisa de rampa nenhuma, não por um cadeirante. Fiquei tenso, chateado, enquanto Elis já copiava do mestre, meio perdida e desaprumada, a lição de um chute espalhafatoso.
Ela me vê do lado de fora e, no auge de sua inocência inclusiva, começa a berrar e gesticular com a: “Veeeeem, pai, vem! Já começou!”.
“Não dá, filha! Papai não consegue entrar”, respondo com cara de tacho, encabulado diante da minha pequena, que sente pela primeira vez na vida, já aos três anos, os sintomas de um mundo não desenhado para o diverso, não acolhedor com quem é diferente, refletindo em suas famílias.
Enquanto meu coração derretia, Elis parecia se sintonizar com minha angústia. Olha ao seu redor, com um montão de pais e seus filhos brincando de artes marciais, e solta um golpe final naquela situação. Sai da quadra, pega em minha mão e me faz um convite: “Vamos conhecer a escola, pai. Tem galinha, pato, Branca de Neve. É muito legal aqui, pai”.
Quando pensava que a presepada maior já era passado, eis que é chegada a hora da apresentação da turma. No momento em que o “grupo 2” foi chamado ao palco, foi como se um enxame de homenzarrões, machos alfas, coaches de como se dar bem em festinhas infantis, saísse em disparada para conseguir o melhor lugar.
Fui me embrenhando pelos cantos, passando sobre os pés de todo o mundo com as rodas da cadeira até ficar num vão entre o sovaco de um pai aqui e os dois aparelhos de gravação de outro pai ali. Estiquei o pescoço, construí um sorriso e esperei a cantoria.
Muitos colégios estão adotando o Dia da Família e abandonando as efemérides mais tradicionais devido às múltiplas formas de organização de quem se ama e congrega, na atualidade. Estão também botando olhos sobre as várias maneiras de ser gente, de ser pai, de ser mãe, de ser cuidador.
As “novidades” ainda não chegaram lá pelas escolinhas da zona norte, região onde estuda pitchuca, assim como não chegou à cabeça de muita gente o conceito de ser um pai cadeirante. Por outro lado, me acolhe o versinho que Elis, também espichando o pescoço para me ver, cantou naquele dia: “Meu papai mora no meu coração e é com toda emoção que eu te dou o meu amor”.