O livre mercado da vida: como um remédio de R$ 8,5 milhões pode determinar nova chance para crianças
Para quem acompanha dia após dia a vida de uma criança minguando, sendo levada aos poucos por enfermidades tão severas quanto angustiantes, não quer dizer nada a propagada cifra de R$ 8,5 milhões, custo de um novo medicamento que já chega ao mercado com o título de “mais caro do mundo” e, ao mesmo tempo, prometendo ser o mais eficaz para a recuperação de uma avassaladora doença.
Tudo o que se vê diante dos olhos é uma nova esperança para controlar e reverter os efeitos que abalam a existência do pequeno ser vitimado pela síndrome rara, pela doença degenerativa, pelas más-formações de toda ordem.
Na cabeça dos pais, é como se surgisse uma nova ponte que levará o filho ao trechinho que falta para o desfrute mais completo do dia a dia.
Os montes de dinheiro cobrados pela indústria farmacêutica, justificados pelo custo elevado das aplicações em pesquisa, tecnologia, laboratório e profissionais empenhados em descobertas salvadoras, a princípio, são vistos não como impossíveis de serem escalados, mas viáveis de serem vencidos com apoio dos amigos, do governo, da Justiça, com rifas, com solidariedade, com a venda de tudo.
Para a maior parte dos alpinistas pela salvação, porém, o cume da montanha milionária jamais será atingido. Uns caem logo aos pés do morro quando começam a pensar no que, para os viventes comuns, significam R$ 8,5 milhões, outros empacam na metade do caminho nas mãos de decisões judiciais não cumpridas, de campanhas arrecadatórias que não fecham o custo, de doadores que se cansam.
A volta dos premiados com condições ríspidas de existir à luta quase solitária pela sobrevivência é bastante comum.
Somente alguns ungidos conseguem ter acesso ao novo elixir da salvação, geralmente os que caem nas graças de magnatas de coração mais mole ou os que são agraciados por grandes empresas, por campanhas com escalas gigantescas.
A perversidade do livre mercado quando a mercadoria é a vida é muito mais dura de suportar: a diferença aqui não é entre ter um fuscão preto e um carrão híbrido de última geração —sendo que os dois irão circular por aí—, mas entre ter e não ter acesso àquilo que permitirá seguir vivo, que permitirá dar o gosto mais generoso de aproveitar o sol, a chuva, a terra, o amor.
É justo que cientistas cobrem o que bem entenderem por seus inventos? Talvez seja, mas é injusto que o valor gerado pelos avanços —sobretudo os que guardam relação com a própria vida— fique restrito àqueles que têm “a sorte” de ter acesso a milhões.
Ações de governos, de organizações civis ou de comunidades engajadas são fundamentais para que os embates entre os indivíduos e os gigantes da indústria farmacêutica sejam levados a cabo e não tornem ainda mais dramática a situação dos que padecem as intempéries de viver.
Quanto mais pesquisas forem desenvolvidas e fomentadas em ambientes públicos —universidades, hospitais, centros especializados— ou em parceria com organizações científicas de ponta, maior a chance de famílias não terem de se deparar com a tarefa urgente de amealhar montanhas de dinheiro em troca promessas de saúde para seus filhos.
Ampliar a empatia aos extremos das necessidades humanas dá sentido à evolução de valores. Não há felicidade e realização que resistam ao sofrimento de toda uma família que chora por sua criança que tem a vida ceifada por causa de falta de acesso —não ao esforço pessoal, mas ao dinheiro infindável.