Breve discurso sobre autonomia

Meus sogros decidiram mudar de casa, depois de quase dez anos na mesma morada. A principal razão foi este genro que vive sobre rodas e que exigia uma operação contra catástrofe, com direito a chamar o Samu, o Corpo de Bombeiros e a Defesa Civil, a cada vez que algum acontecimento muito especial me fazia encarar os 36 degraus para me achegar à parentada.

Agora está tudo mais fácil. O apartamento novo exige subir “apenas” seis degraus, pelos quais meu sogro sozinho consegue fazer meu içamento. Tudo bem que durante o feriado o velho teve um piriri e não sabia se segurava a mim ou a sua dignidade durante uma das subidas. Mas deu tudo certo!

A casa nova tem um degrauzinho na cozinha —que evita que eu pegue cervejinha gelada, de cueca, durante a madrugada— e um banheiro onde caibo para fazer uso básico.

Tomar banho é luxo que exige que minha guerreira mulher se engalfinhe comigo, de maneira pouco romântica, até que eu seja depositado em uma cadeirinha de plástico vagabundo dentro do box.

Mas a encrenca maior, não pensem que sou um ingrato, foi de fato resolvida: a escadaria do pânico. Os outros detalhes vão se ajustando com o tempo e são mais simples de enfrentar. Uma atitude inclusiva importante foi realizada e a família ficou mais unida.

É muito difícil entender exatamente as consequências da falta de autonomia quando todos os eixos da carcaça de levar a vida funcionam corretamente. Mesmo nos casos em que alguém perde provisoriamente alguma funcionalidade do corpo em decorrência de algum acidente, por exemplo, resiste de forma muito transitória a lembrança de como era “ruim” a sensação de dependência, de não poder fazer o que se quer, o que se tem vontade, na hora que quer.

O pensamento comum é que não tem “nada de mais” em dar uma ajudinha empurrando, carregando, conduzindo, apoiando, abrindo portas, dando uma licencinha, abrindo uma lata de sardinha.

De fato, toda solidariedade e gentileza são dignas e necessárias, mas o exercício aqui é outro.

É o de tentar imaginar uma certa sensação de angústia ao não se poder ter autonomia, de não poder ter um prazerzinho quase pueril de agir de maneira independente, no momento em que se deseja, de usufruir do sagrado direito de passar despercebido numa situação.

Algo que se aproxima dessa sensação é imaginar-se permanentemente em uma estrada no ermo do mundo com o tanque de combustível da charanga na reserva.

Não se sabe se vai chegar, não se sabe se ficará parado no caminho, não se sabe se alguma boa alma irá prestar socorro, não se sabe se é melhor estacionar ou continuar a jornada.

Cabe lembrar ainda que a população do Brasil está em franco envelhecimento e o país vive um fenômeno desalentador: velhos que não conseguem mais morar em suas próprias casas porque construíram quartos no segundo andar e não conseguem mais subir escadas, porque o piso elegante é muito escorregadio, porque as portas são estreitas demais para a passagem de um andador ou cadeira de rodas.

Quanto mais um ambiente for pensado na perspectiva da pluralidade de seu uso, nos recursos de acessibilidade de que irá dispor (olha aí a maravilha das torneiras e portas com abrimento automático!), mais naturalizadas ficam as relações, mais próximas da igualdade ficam as oportunidades, menos angustiadas ficarão as pessoas que necessitam desses diferenciais hoje e no futuro.