Como a criatividade alavanca e amplia possibilidades da educação inclusiva

O “como fazer” com alunos com deficiência em sala de aula, sobretudo aqueles que fogem muito ao padrão do estudante típico, talvez seja a pergunta mais comum feita por pessoas ligadas à educação de uma forma geral.

Em minhas falações Brasil afora, digo sempre que o mais importante é entender que meninos e meninas não possuem um manual de instrução e que crianças são todas iguais, inclusive em suas diferenças.

Mas essa explicação não cala de forma definitiva as inquietações de professores que recebem em sala de aula crianças cegas, com paralisia cerebral, com síndrome de down, com síndromes raras e com as mais diferentes especificidades de viver.

Uma premissa teórica e atrelada ao discurso inclusivo, contudo, resiste a qualquer contestação: o incentivo à criatividade, à busca de soluções dentro do próprio ambiente escolar, entre os alunos.

Pensando nisso, o instituto Alana, organização social dedicada aos mais diversos aspectos da proteção da vida da criança, vai lançar, em conjunto com a Ashoka, a obra “Criatividade – mudar a educação, transformar o mundo”.

O livro apresenta uma série de abordagens a respeito de como fazer o ambiente escolar mais acolhedor para quem mais precisa.

O blog apresenta abaixo um dos textos inéditos que estarão no livro, que será lançado nesta quinta-feira (6) e terá distribuição gratuita digital, por meio de um ebook!

O autor é Rodrigo Mendes, fundador do Instituto Rodrigo Mendes, entidade civil com maior atuação no país no fomento da educação inclusiva.

Rodrigo Mendes, presidente do Instituto Rodrigo Mendes, que fomenta a educação inclusiva Foto: Bruno Miranda/Folhapress

 

Criatividade: potente catalisador para a inclusão escolar

Rodrigo Hübner Mendes

“Dê aos alunos algo para fazer, não algo para aprender; e o ato de fazer é como o incentivo por pensar; a aprendizagem resulta naturalmente”. John Dewey

“Como farei para ensinar física ao André?”, perguntou-se Bruno ao receber seu novo aluno. André era cego e acabara de integrar uma das turmas do ensino Médio na escola Professor Nagib Coelho Matni, situada na periferia de Belém (PA).

Bruno decidiu apostar na capacidade criativa dos seus estudantes para encontrar respostas. Como falar sobre luz, cores e formação de imagens para quem não enxerga?

Esse foi o desafio assumido pelos adolescentes que, ao debaterem possibilidades, decidiram produzir materiais que favorecessem a compreensão sobre conceitos da óptica por meio do tato.

Depois de se dividirem em pequenos grupos, o primeiro passo foi pesquisar na internet o que já existia no campo do ensino da física para pessoas com deficiência visual.

Ao se aproximarem do trabalho de especialistas, como Eder Pires de Camargo, Jorge Adonai Coelho Brasil e Simone da Graça de Castro Fraiha,[1] os estudantes ampliaram seu repertório sobre o uso de recursos não visuais e partiram para a fase de criação dos materiais.

Tinham como premissa usar insumos recicláveis e de baixo custo. Além de participar de um dos grupos, André ficou responsável por testar a qualidade de cada produto, avaliando se correspondiam ao objetivo de propiciar o entendimento de fenômenos ópticos sem que fosse necessária a visão.

Para o ensino da formação de imagens em espelhos planos, por exemplo, os alunos criaram uma “maquete” com uma base quadrada de madeira, sobre a qual foram colocadas duas bonecas idênticas, frente a frente, em extremidades opostas.

A base foi dividida por uma placa de acrílico, fixada verticalmente no centro da maquete. Uma boneca representava o objeto real e a outra a imagem virtual formada no espelho plano.

Como forma de simular os raios de luz entre o objeto e a imagem, os estudantes conectaram as bonecas por meio de quatro linhas de crochê, amarradas em partes diferentes do corpo.

Tais linhas atravessavam o acrílico por meio de furos. Chamou a atenção de Bruno a sofisticação e a eficiência do material inventado pela turma.

Soluções com o mesmo nível de complexidade foram produzidas para aulas sobre refração, dispersão da luz, formação das cores, composição da luz branca e formação de imagens no espelho côncavo.

É importante citar que essa experiência[2] levou os estudantes a transcender as fronteiras da física e se interessar por temas candentes da vida contemporânea, como igualdade e respeito. Uma das indagações era “quem deveria se responsabilizar por garantir que André aprendesse Física?

O Estado? A escola? A família?”. Na busca por subsídios, fizeram pesquisas, leram artigos, assistiram a reportagens. Enfim, desenvolveram ações que denotam um processo genuíno de apropriação do conhecimento, que dialoga com o pensamento de Dewey citado na epígrafe.

Durante o desenvolvimento desse projeto, Bruno procurou estimular os alunos a serem os protagonistas da sua aprendizagem, aguçando sua curiosidade e um olhar de pesquisador, tanto no plano individual, como no coletivo. Segundo ele, “Da concepção à confecção dos produtos educacionais, todo o processo criativo foi conduzido por eles”.

O caso relatado acima evidencia a importância da criatividade como uma competência a ser desenvolvida no ambiente escolar. Além disso, ilustra o enorme potencial de engajamento dos jovens, quando convidados a formular propostas relacionadas a causas sociais, como a inclusão de pessoas com deficiência.

Cabe lembrar que uma das dez competências[3] gerais estabelecidas pela Base Nacional Comum Curricular, documento concebido para nortear a criação dos currículos adotados pelas redes de ensino básico do Brasil, refere-se diretamente a esse assunto.

Dada sua relevância, será que é possível identificarmos condições essenciais para que a criatividade floresça?

Em 2010, ao visitar a sede do Project Zero,[4] saí surpreso com a qualidade do acervo de pesquisas sobre a criatividade humana produzido por essa organização.

Grande parte delas elegia os fenômenos observados em crianças que experimentavam o fazer artístico como objeto de estudo.

De acordo com Howard Gardner, um dos fundadores do projeto, a infância é espontaneamente permeada pela capacidade de se criar.

Muitos artistas, como Pablo Picasso, já haviam relatado essa percepção. Nesse sentido, no papel de educadores, precisamos perseguir formas de manter vivas a mente e a sensibilidade das crianças.

Em vez de impor percursos engessados, que enfatizam a memorização de certas informações, as escolas deveriam estimular também a criatividade, em todos os níveis de ensino.

Para que isso seja possível, Gardner destaca alguns ingredientes que considera imprescindíveis, como desafiar os estudantes para a solução de problemas, expô-los ao risco e tolerar erros. Segundo ele, se não formos instigados, dificilmente teremos a chance de ser criativos.

Parece-me haver hoje um certo consenso de que a reprodução dos padrões de ensino que preponderaram no mundo ao longo dos últimos séculos são insuficientes para que viabilizemos uma educação inclusiva.

Na verdade, são incompatíveis com essa concepção de ensino e dificultam o acolhimento de crianças e adolescentes destoantes da fantasiosa ideia do “aluno normal”, e que por isso geram maior estranhamento.

Deparamo-nos, portanto, com a urgência do desprendimento do modelo da “receita pronta” (o one-size-fits-all) e do investimento na diversificação das práticas pedagógicas. Logo, ao falarmos sobre a importância da criatividade, não nos referimos somente aos estudantes.

Em 2016, tive a oportunidade de conhecer de perto um projeto de educação física inclusiva criado pelos educadores da escola Terezinha Souza, também situada em Belém.

Dentre os 750 estudantes que frequentavam o ensino fundamental nessa instituição, doze tinham algum tipo de deficiência ou transtorno do espectro autista.

Provocados a repensar as modalidades esportivas convencionais a partir do objetivo de garantir que toda criança participasse das aulas, os professores Itair (Educação Física), Nazaré (Artes) e Lena (Atendimento Educacional Especializado) escolheram o tênis como ponto de partida.

Ou seja, o projeto nasceu com uma preocupação de envolver profissionais de diferentes disciplinas que contaram com o apoio da coordenação pedagógica.

Para introduzir o tênis aos estudantes, a equipe apresentou vídeos sobre a versão tradicional e a modalidade em cadeira de rodas. Em seguida, os alunos foram convidados a construir raquetes e bolinhas com materiais do cotidiano escolar (pedaços de papelão, papéis, fita-crepe etc) e a vivenciar os movimentos desse esporte.

Com a intenção de explorar o tema da sustentabilidade, a equipe levou o grupo para visitas ao projeto Oikos, iniciativa do Instituto Federal do Pará voltada à propagação da cultura de reciclagem.

Nessas ocasiões, os estudantes puderam confeccionar raquetes com materiais reutilizáveis, como isopor e garrafas plásticas, e participar de atividades teatrais relacionadas à educação ambiental.

Visando adequar o espaço físico da escola, os professores orientaram os alunos a dividir a quadra de esportes em “miniquadras”, por meio de marcações de giz no chão. Esse arranjo tinha como objetivo permitir que várias pessoas pudessem jogar ao mesmo tempo.

As redes foram produzidas com sisal e nylon, fixados em tubos de pvc que foram encaixados em pneus oferecidos por uma mecânica do bairro.

Batizado de minitênis, o jogo era praticado por duplas. As regras foram flexibilizadas para garantir que todos conseguissem participar. Por exemplo, valia sacar de diferentes formas, de qualquer lugar da quadra, e a bola podia quicar quantas vezes fossem necessárias para o aluno alcançá-la.

Em vez de se preocupar com a contagem dos pontos, os estudantes concentravam sua atenção na realização dos movimentos, cada um de acordo com sua singularidade. A substituição do aspecto competitivo por uma abordagem cooperativa resultou no entusiasmo, na diversão e numa maior união do grupo.

Vários aspectos exemplares saltam aos olhos quando refletimos sobre esse projeto: a abordagem multidisciplinar, que agregou saberes de diferentes áreas do conhecimento; a perspectiva educacional que explora o território e ultrapassa os muros da escola, refletida na articulação feita com a Oikos; a coerência com que cada etapa foi planejada, demonstrando uma clareza da equipe sobre princípios de uma educação que valorizar as diferenças.

Somada a essas qualidades, merece um reconhecimento especial a notável capacidade criativa dos professores, manifestada na invenção do minitênis.

Tenho observado essa virtude em escolas das cinco regiões do país. Em Belford Roxo (RJ), uma professora desafiada a ensinar as fases da lua para uma turma bastante heterogênea criou dinâmicas usando uma representação do sistema solar, construída com bolas de isopor, um celular e um pau de selfie por um time de makers.

Em Fortaleza (CE), a equipe produziu um musical baseado na história do Rei Leão, onde o protagonista foi interpretado por uma criança com transtorno do espectro autista.

Em Cuiabá (MT), a equipe conseguiu promover discussões sobre temas complexos, como a diferença entre o paradigma da integração e o paradigma da inclusão, a partir de um contexto de discriminação que emergiu dos próprios estudantes.

Em Belo Horizonte (MG), o professor de inglês soube driblar dificuldades de socialização de alguns adolescentes ao identificar a paixão de um deles por música e utilizar letras de sua banda preferida para o ensino da gramática.

Em Cianorte (PR), os educadores criaram um amplo conjunto de ações voltadas à discussão de preconceito e bullying que contemplaram seis disciplinas e propiciaram aos alunos a oportunidade de exercerem o papel de formadores de seus colegas.

Além da capacidade inventiva, essas várias experiências compartilham uma característica extremamente relevante: beneficiaram todos os estudantes, ou seja, promoveram uma educação melhor para cada um.

Interessante notar que os ingredientes, apontados por Gardner, favorecedores da criatividade dos educandos, parecem fazer sentido também para os docentes.

Especialmente as situações-problema trazidas pelo desafio de acolher a diversidade. Além desses, será que algum outro fator pode ser considerado comum às experiências citadas anteriormente?

De acordo com Mihaly Csikszentmihalyi, psicólogo que dedicou grande parte de suas pesquisas ao entendimento da criatividade, para que ela se traduza em ações concretas, o ambiente em que seu autor está inserido precisa, em algum nível, desejar ou defender as novas ideias propostas.

Ou seja, essas ideias precisam ser percebidas como úteis e valiosas. Esse pensamento vai ao encontro da minha constatação de que a atitude dos gestores escolares é também um elemento decisivo para que a escola se abra a inovações.

Nos casos mais emblemáticos de educação inclusiva que conheci até hoje, a direção expressava um nítido compromisso com a garantia do direito dos estudantes com deficiência e exercia uma liderança capaz de reverberar essa agenda para toda a comunidade.

Em certas ocasiões, o próprio gestor demonstrava ser criativo na forma como articulava soluções com sua equipe, com o entorno e com o poder público.

Vivemos um momento em que criatividade deixou de ser um tema estratégico apenas para quem atua em áreas como ciência, tecnologia, comunicação e entretenimento.

Criatividade é hoje um tema substancial para muitos outros universos, como o da escola. E para que ela tenha condições de aflorar, precisamos inserir no cotidiano das instituições de ensino, de forma intencional, desafios que engajem o aluno, o educador e o gestor.

Isso corresponde a garantir espaço para o risco, para o erro e para a inovação. A escola para todos, aquela que sonhamos, só vingará se assumir a criatividade como um potente catalisador para o cumprimento de sua nobre missão.

(*) Rodrigo Hübner Mendes é professor e pesquisador sobre educação inclusiva. Há 25 anos, fundou o Instituto Rodrigo Mendes, que desenvolve pesquisas e programas de formação em diversas partes do mundo.

[1] Todos físicos que se dedicam ao tema: Eder P. Camargo, professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp), foi a primeira pessoa cega a conquistar o título de livre-docência no Brasil e é considerado uma referência no assunto; Jorge A. C. Brasil, professor da Universidade Federal do Para (UFPA), explorou a questão em seu trabalho de conclusão de curso “Propostas de ensino de Física para alunos com deficiência visual” (2004); Simone Frahia, também professora na UFPA, tem entre suas principais linhas de pesquisa as abordagens inclusivas para o ensino de física.
[2] Todas as experiências mencionadas nesse artigo foram publicadas e podem ser acessadas no portal diversa.org.br
[3] Segunda competência geral da BNCC: Exercitar a curiosidade intelectual e recorrer à abordagem própria das ciências, incluindo a investigação, a reflexão, a análise crítica, a imaginação e a criatividade, para investigar causas, elaborar e testar hipóteses, formular e resolver problemas e criar soluções (inclusive tecnológicas) com base nos conhecimentos das diferentes áreas.
[4] Fundado pelo filósofo Nelson Goodman na Harvard Graduate School of Education, o Project Zero nasceu em 1967 com uma organização focada na compreensão da aprendizagem através das artes.