Pessoas com deficiência encaram as ruas e veem atitude virar cinzas
Milhares de pessoas já se comoveram, se emocionaram ou se “divertiram” com a cena multiplicada pelas redes: um rapaz se ajoelha e beija longamente uma garota toda produzida de folia. O pano de fundo é um bloquinho carnavalesco e uma avenida lotada de gente pulando e vibrando.
Tudo seria banal não fosse o fato de a moça em questão estar sentada em uma cadeira de rodas e o grupo de garotos que se incumbia da filmagem não proferisse frases do tipo como “esse aí é guerreiro, mesmo!”, “esse não perdoa ninguém!”, “olha lá, coitada da moça”. O mesmo nível de gravação também circula para uma jovem com nanismo.
Paralelamente a esse fato, assisti recentemente a um esquete de um desses novos e esforçados trabalhadores da comédia que fazem shows noturnos fisgando um público que não quer pensar em nada, apenas rir de situações fugazes ou mesmo da cara dos outros.
Afonso Padilha, o humorista em questão, parece ter talento para o improviso, embora seu repertório esteja circunscrito a uma graça rasteira, pouco sofisticada e fadada a acabar como num sorriso amarelo diante seus apelos atuais.
No quadro que assisti, ele destilava sem nenhum tipo de constrangimento ou reflexão sua verborragia a respeito de situações em que se deparou no cotidiano com pessoas com deficiência. Fez piada de uma moça sem os braços que encontrou no avião, de um rapaz cego que foi a seu show, entre outros tipos de gente.
Longe de mim, bem longe, querer ditar o que um profissional do riso deva brincar ou não, mas o que Padilha faz, o que os garotos que filmaram a jovem cadeirante “ficando” fizeram, foi transformar um grande esforço da diversidade –o de estar nas ruas a qualquer custo, o de mostrar a cara– em cinzas.
Não há outra maneira de ter mais inclusão, de exigir mais acesso, mais condições de ir, vir e ficar do que enfrentar os meios sociais e mostrar que múltiplas faces formam o mosaico que se intitula “serumano”.
Então, o povo quebrado, o povo ruim do escutador de novela, o povo ruim das vistas já entendeu que precisa se expor às dores do “lá fora”, que são muitas e de diversas intensidades. O que chama a atenção, porém, é que nenhuma delas parece ser tão cruel e tão devastadora como quando o seu “semelhante” te aponta o dedo e te oferece mais exclusão, mais marginalidade.
Não entrego o papel de vítima a ninguém, não acho que se deva censurar a piada de qualquer nível ou tema, mas coloco a urgência de um olhar mais digno a esse grupo vivente, no mesmo patamar daquele voltado à extinção dos canudos de plástico e da violência contra os bichos, por exemplo, que parece atingir a todos.
Ninguém precisa ser parceirão de um paralisado cerebral, de um down que despirocam em plena avenida de uma maneira descompensada –nem trata-los como criança ou como heróis–, com movimentos bem doidos, mas antes de ridicularizar alguém que conseguiu subverter uma série de entraves para exalar felicidade na rua, é importante não incendiar uma esperança por dias mais iluminados, não fazer virar cinzas o que era intenção de puro deleite de viver.