Como youtubers e vídeos de internet estão sendo desonestos com a infância

Biscoita, minha filha Elis, 3, pediu quatro presentes para Papai Noel: um caminhão de bombeiros –que Damares nos perdoe–, a casa do urso, a boneca Bebê Moranguinho e a fantasia da princesa Sofia.

Graças à 25 de Março e à parentada, ganhou todos. Menos de um mês depois, os brinquedos já perderam terreno para seu Lobato, a forma como ela chama o tablet onde moram os vídeos de que tanto gosta.

A transformação atinge diversas famílias. A molecada tem muito mais acesso a bonecos, joguinhos e tranqueiras infantis em geral, mas querem mesmo é se conectar com músicas, youtubers e brincadeiras eletrônicas.

Procuro não ser desses xaropes que acham que tudo precisa ser lúdico, que o mundo analógico é o melhor, que os pequenos irão enlouquecer e se idiotizar com a tecnologia, pois não há estímulo à imaginação.

A vivência lá em casa mostra o contrário. É um tal de encenar a dança da moderníssima heroína francesa Ladybug, de cantar uma música gospel chiclete da Yasmin sobre amor aos animais e a deuxxx e de propor brincadeiras com melecas, números, letras e cores.

Com parcimônia, divisão do tempo e com alguma supervisão, as crianças podem curtir o universo eletrônico e, ao mesmo tempo, viver experiências, interagir com amigos e destruir a casa normalmente.

Mas há, sim, uma armadilha em que as famílias estão caindo inocentemente: youtubers dos quais os pequenos tanto gostam estão rezando ladainhas cada vez mais extensas e rendosas (a eles) para que as crianças azucrinem os pais até que comprem certos brinquedos, geralmente muito caros.

Uma bonequinha “surpresa” exibida por vários canais infantis e que cabe na palma de uma mão estava sendo vendida no Natal por algo em torno de R$ 80, mas cujo kit de apetrechos pode levar o custo final a R$ 900.

“Tias da internet” chegaram ao requinte de explicar aos “amiguinhos” como diferenciar se papai e mamãe compraram uma bonequinha verdadeira ou uma falsificada.

Brinquedos da moda são parte do jogo, mas embutir nas crianças a cada vídeo um desejo efêmero, dispendioso e nada sustentável é perigoso para a infância, para as relações familiares e para a formação futura.

Pitchuca já foi avisada de que não terá mais brinquedos novos por um bom tempo e sabe bem quais “canais infantis” deixam papai furioso –e que ela visita vez ou outra para chamar a atenção e fazer tipo–, mas essa responsabilidade precisa ser compartilhada.

Geradores de conteúdo, gente de publicidade, plataformas de divulgação e redes sociais não podem jogar a conta cara do consumismo infantil na lomba dos pais e na liberdade de “não assistir” ao que rola na rede, como se o apertar do botão de desligar fosse algo simples e direto em plena era cibernética.

O bom desenvolvimento da criança depende e vai sempre depender da aldeia. Uns salvam da cobra, outros de cair no mar e vários auxiliam na sobrevivência na selva.

Em casa a gente tenta bloquear o Lucas Neto –fazedor de vídeos tóxicos para pequenos–, trabalha o conceito do valor das coisas e disciplina, mas são difusas as responsabilidades de não zumbizar as crianças com métodos de venda desleais, de transformar o efêmero de desembrulhar um presente numa grande aventura e de enganar meninos e meninas com publicidade maquiada.

Não é preciso manual do Ministério da Família para ensinar a usar a rede eletrônica com as crianças, muito menos que haja culpa dos pais por não conseguirem controlar comportamentos controversos dos filhos pequenos. Basta todo o mundo cumprir bem seu papel, de preferência reciclável, limpo e honesto. Honesto com a infância.