A vacina e o Visconde
—Filha, o aniversário do papai tá chegando, o que você vai me dar de presente?
Elis, minha biscoita de três anos, pensa por breves instantes e me entrega uma solução, uma declaração de amor e uma angústia. Na realidade, mais uma angústia nessa jornada intensa de ser um pai diferentão diante de uma criança imaginativa, inquieta, meio doida.
—Tem que ser uma coisa de adulto, né, pai? Então vai ser um ovo bem grande, do tamanho da Peppa Pig, e lá dentro dele vai ter um boneco do Papai Pig. Gostou?!
—Adorei, filha. Um presente ótimo! Vamos brincar de Cinderela?
—Eu também vou te dar as gotinhas, pai.
Emudeci. Desde quando minha menina se deu conta que o próprio pai não se encaixava na dita normalidade do mundo e das coisas e que não andava igual a todos, que usa uma “cadeirinha” para se deslocar, como ela gosta de falar, passei a explicar que, no tempo em que eu era bebê, não tomei todas as gotinhas necessárias para não ficar dodói.
Recebi apenas duas das três doses fundamentais da Sabin —afora as duas de reforço—, que imunizam contra a paralisia infantil, e, aos nove meses, fiquei doente, pouca coisa sobrou e o resto da história está aí nas internets.
Ao contrário das campanhas institucionais, que só culpabilizam as famílias pela desgraceira, lembro que o poder público foi omisso
durante anos de avanço do vírus pelo país, sobretudo em sua porção mais central e mais pobre.
Milhares de crianças tiveram de morrer ou virar “diversidade” para que uma política pública séria de enfrentamento fosse adotada, o que foi acontecer já no início da década de 1980.
—Filha, mas não vai dar certo porque o papai já é grande, entende? Não vai fazer efeito. Vou ficar mesmo na cadeirinha, tá?
—Claro que não, pai! Sabe o Visconde, do Sítio do Pica-pau Amarelo, do seu Lobato? Então, dá para você ficar pequeno, que nem espiga de milho, eu te dou as gotinhas rapidinho, você cresce, e não vai mais precisar da cadeirinha, disse minha pitchuca, numa animação desconcertante.
Não foi a única vez que ela quis me presentear com a vacina. Certa vez, ela tentou trazer uma dose do posto de saúde, mas “a moça não deixou”.
Nesse mundo tão sem esperanças, tão cheio de ódios, de enfrentamentos, poderia eu dizer na lata de minha filha que seus sonhos não vão condizer jamais com a realidade, que não há fórmula que me faça andar?
Quando brincamos de Branca de Neve, ela já sabe que não vou me deitar no chão para dar o derradeiro beijo salvador. Ela mesma se levanta, meio sonâmbula, e aí então concluímos a cena. Isso me leva a pensar que a vontade dela pode ser, talvez, mais por mim do que por ela mesma. E isso faz tudo ficar ainda mais complexo.
Se por vezes me condói, em outras sinto um baita orgulho de ter em casa uma menininha que, à sua maneira, já compreende o quão desafiadora é a vida fora da curva e que tenta criar soluções mágicas para devolvê-la ao prumo. Isso já é passo fundamental para incorporar um valor humano fundamental: o de que os outros, em seus universos de diferenças, precisam de apoio, de incentivo, de empatia, de fortalecimento diante de suas condições, quaisquer condições.
Minhas gotinhas no próximo domingo (7) vão para “salvar” a mulher, as gays, os negros, os “malacabados” e os direitos humanos!