Uma Copa para as crianças

Em algum momento deste início de século 21, compromissos universais com as garantias de direitos das crianças, que ganharam fôlego no final do século 20, foram sendo escamoteados. Parece que a máxima “criança é tudo de bom” tem perdido terreno para os egoísmos e chatices dos adultos.

É escandaloso que a exposição de meninos e meninas a perigos devastadores –como ataques com armas químicas em guerras, tornarem-se alvos em troca de tiros em morros cariocas e não imunizá-las com vacinas, por exemplo– seja cada vez mais frequente.

Ao lado das grandes questões, que demandam reflexões mais conjunturais, como sobre as crises migratórias que dão visibilidade a infestações de sarampo que debilitam centenas de crianças venezuelanas, também chocam as ameaças aos pequenos em situações mais domésticas.

Há publicidade atualmente de suicídios envolvendo crianças angustiadas, de intolerância de adultos à presença ou às manifestações infantis –e parece haver legitimidade em defender o não apreço por infantes– e de casos cada vez mais escabrosos de violência praticada contra meninos e meninas dentro de casa, na escola.

Em uma outra frente, se os adultos estão em polvorosa com os prejuízos e repercussões causados pelas notícias falsas bombardeadas no cotidiano das redes, as ameaças eletrônicas a meninos e meninas, em forma de conteúdos audiovisuais que estimulam o consumo desenfreado, a competição e a vaidade extrema, passam desapercebidas, embaladas de entretenimento e diversão em vídeos coloridos e musicais.

Criança indígena da etnia Warao vindos da Venezuela para viver em Boa Vista (RR) Imagem: Edmar Barros/Futura Press/Folhapress

Talvez sejam os miseráveis, repetitivos e enfadonhos problemas de adultos, como as crises financeiras, a alta do petróleo e do dólar e as insatisfações pessoais, os responsáveis pela displicência em pensar na melhor das soluções para o cansaço dos ombros do mundo: crianças mais felizes, amparadas e respeitadas.

Talvez esteja se perdendo o pudor de deixar extravasar para os pequenos toda a intolerância, todo o preconceito, toda a incompreensão que se tem na relação de um adulto com o outro.

É no mínimo controverso ver a ciência se esmerar em manipular genes que prometem entregar bebês cada vez mais fofos se humanidade ainda se engalfinha com suas feiuras de caráter, se não atua de maneira enérgica e frequente para defender a fragilidade de uma criança.

Um esperançoso alento, porém, é que o apelo de um sofrimento infantil ainda parece ser capaz de estremecer almas e corações em dimensão planetária. A natureza, em último grau, precisa reagir.

Quem não quis ter as forças do He-Man para acolher com afinco cada um daqueles pequenos enjaulados em território americano? Quem não se condoeu com a solidão dilacerante de cada um deles afastados dos pais? Quem não se condói ao ver um pequeno com marcas de agressão e quem não emprestou lágrimas para mãe que cobriu o cachão do filho com o uniforme escolar ensanguentado?

Mais do que indignação e choro, cabe um chamamento a todos os atores sociais e globais a respeito da dormência em relação às ações de salvaguarda à criança.

Como esse público não tem, por razões óbvias, condições de empunhar suas bandeiras, de entoar seus cânticos de proteção, nada melhor do que o tempo de Copa, de confraternização dos povos, para botar o mundo para pensar e agir também por gols e resultados que elevem a campeã de nossas prioridades, a infância.