Mãe de criança com deficiência múltipla não quer rótulo de ‘especial’

Denise Crispim é leitora deste blog desde a primeira semana. Ajudou a amadurecer conceitos de abordagem, estimulou os enfrentamentos de estigmas e lugar comum ao mesmo tempo em que criava a filha, Sofia, que tem uma deficiência múltipla e severa.

Sofia chegou aqui bebê e, agora, caminha para a adolescência. Denise chegou com algumas inseguranças e medos, hoje enfrenta o mundo e é da linha de frente pelo que é direito, pelo que é legítimo e pelo que é justo à pessoa com deficiência.

O quinto texto da Semana das Mães é para recortar, colar na parede e reler a cada vez que uma mãe ouvir que precisa desistir de seu filho. É para ser revisitado quando faltarem forças para brigar contra o peso que ainda existe sobre a diversidade humana. É para chorar, é para rir e é para celebrar a vida e a maternidade.

Desfrute de cada palavra…

Doze anos -quase 13- de maternidade. É uma jornada, uma experiência intensa e valiosa. Se eu fosse escrever um currículo materno, certamente o que não estaria escrito é “mãe especial”.

Nunca. Minha maternidade foi atípica, sim. Gestação gemelar, parto prematuro, a dor de perder uma filha aos 40 dias de vida e acompanhar a outra por longos 67 dias de UTI e cinco sepses. Sofia foi uma sobrevivente.

Ela tinha –e tem– uma jornada a cumprir. Nunca duvidei disso e nunca, jamais me queixei por ter descoberto uma sequela na semana do aniversário de um ano. Quem passa pela experiência de perder um filho sabe o valor da vida. Ela não falaria, não andaria, jamais seria alfabetizada, me disseram. Investir dinheiro ou tempo seria desperdício, afirmaram, no mínimo.

Cinco neurologistas. Até que eu encontrei numa ONG o apoio de outras mães que como eu não estavam dispostas a desistir dos filhos. Encontrei amigas e a força que eu precisava, encontrei um neurologista que me disse o que eu precisava ouvir. E segui adiante, ou melhor, seguimos.

Mãe e filha, que querem entendimento da diversidade, mas sem rótulos de “especiais” Foto: Arquivo Pessoal/Divulgação

Pouco tempo depois, minha mãe e parceira nessa jornada de cuidados adoeceu. Virei cuidadora em dose dupla por alguns meses, até que ela partiu. A partida tão precoce dela me fez valorizar ainda mais a nossa jornada.

Mais uma vez, a morte me ensinou o quanto a vida é preciosa. Mãe, essa figura tão impactante, era agora esse o meu papel principal. E sem a avó, a Sofia precisaria de uma mãe ainda melhor. E é assim que eu venho tentando ser, a cada dia. Mas nunca a mãe especial.

Como já foi debatido tantas vezes, esse rótulo esconde a segregação. O especial é o que não é comum, não é aceito, não é parte, aliás, está à parte. Eu sou a mãe comum. A mãe cansada e descabelada. A mãe que esquece de colocar o lanche na mochila. Que atrasa para pegar na escola. Que chega sem paciência depois de um dia difícil no trabalho. A mãe que dá bronca quando precisa, mas morre de orgulho da filha o tempo todo.

Eu quero ser vista como uma mãe comum. Quero ter o direito de conversar sobre assuntos que não sejam deficiência. Quero brigar por coisas banais também e dar risada do que não merece nossas rugas. Isso não significa negar a diversidade.

Viajar, sair, enfrentar o mundo é rotina de mãe e filha Foto: Arquivo Pessoal/Divulgação

Nessa jornada de quase 13 anos aprendi que todos somos diferentes e o respeito a isso é fundamental. Mas eu tenho convicção de que cabe a nós, mães, um papel importante nessa luta. Nós mulheres sempre sofremos pela imposição de padrões: do corpo ao comportamento.

Na maternidade, então, tem uma multidão para julgar –da decisão de ter ou não filhos, a quantidade, a idade, a via de parto… sem falar na que não quer ter filhos, na mãe adotiva, a mãe de pets… a lista é interminável. Se esse julgamento faz tão mal para nós, por que faria bem aos nossos filhos?

Eu quero que minha filha não seja olhada como um ET por usar uma cadeira de rodas da mesma forma que eu preciso tratar como igual o colega autista, as diferentes configurações familiares dos colegas ou a avó com Alzheimer. Estamos ainda muito longe disso.

Mas eu sigo fazendo minha parte: viajando, saindo e insistindo em mostrar a cara, mesmo cansada. Nesses quase 13 anos já vi muita coisa mudar. Vi escolas que não aceitavam crianças com deficiência hoje mudando de postura.

Vi a Lei Brasileira de Inclusão ser aprovada, promovendo avanços em diversas áreas. Vi minha filha aprender a ler, escrever, ser aceita numa excelente escola e ter um ótimo desempenho. Mas ainda quero ver as outras mães – e amigos, colegas – olhando para mim como mãe – não como alguém diferente delas. Nisso ainda temos muito a caminhar.

Denise e Sofia, que contornam juntas sequelas graves da deficiência múltipla Foto: Arquivo Pessoal/Divulgação

No fim, eu que eu tenho de diferente é que eu preciso lutar mais. Os equipamentos dela são mais caros, sair de casa é mais complexo, tudo que está ao nosso redor dificulta a nossa cidadania. Então na minha jornada –repleta de gratidão e amor por tudo o que vivemos e aprendemos juntas– o que eu sinto falta é ver mais empenho, principalmente de outras mães.

Às vezes eu sinto que é uma jornada solitária e não pode ser. Deveria ser de todos. Que o respeito à diversidade ganhe a mesma força que a Sofia mostrou ao sobreviver. Porque quem tem um filho com deficiência não é super-herói e nem tem estoque infinito de paciência (até deveria vir de fábrica, mas não vem). Então nos ajudem, por um futuro em que o respeito a todos seja algo tão básico que a gente nem precise cobrar. Mães do mundo, precisamos fazer dessa a causa de todos nós!

Denise Crispim

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