A incapacidade de cuidar
Não foi pela explosão de uma bomba implantada por um biruta, não foi o impacto de um avião sequestrado, não foi um ataque de maribondos raivosos. Um prédio de 24 andares se esfacelou em chamas, como num filme de ficção, no centro de uma das maiores cidades do mundo, devido à incapacidade dessa gigante cuidar de si e cuidar dos outros.
Local que abrigava o arranha-céu, o largo do Paissandu –que já foi importante reduto boêmio, recinto de manifestações artísticas, culturais e religiosas–, vem há décadas acumulando o sofrimento e a angústia do descaso.
Por ali, dominam as paredes carcomidas. Por ali, o patrimônio histórico sangra pelo abandono, pela inutilidade. Por ali, o fuzuê dos ambulantes atrás de trocados cria uma barulheira que desconcentra. Por ali, calçadas deterioradas dificultam o ir, o vir e o ficar.
A queda do que já foi um dos mais modernos edifícios da cidade representa a exaustão de quem não aguenta mais tanto desdém com a falta de cuidado urbano, com a negação da memória e com a falta de assistência a suas necessidades básicas e, assim, desmaia, no meio da rua, já em inanição.
Para completar o requinte do desdém pelo cuidar de São Paulo, no prédio, que acabou se tornando uma batata quente arquitetônica ora jogada nas mãos do poder público federal, ora na do municipal, centenas de pessoas resolveram morar à força e a fórceps.
Sem perspectiva de moradia justa e digna, invade-se e aceita-se sobreviver em condições precárias. Sem energia elétrica, puxam-se gatos dos vizinhos. Sem elevador, jogava-se o lixo no fosso. Sem ter como cozinhar dignamente, acende-se o fogo de qualquer maneira e muda-se para pior o desvairado retrato da Pauliceia.
A sequência de incapacidades de cuidar, das mais básicas, repondo uma pedra portuguesa, às mais complexas, retirando pessoas de uma área de risco potencial, vai sempre cobrando preços mais altos para a vida urbana, para o cidadão.
Desta vez, afetou a estrutura de prédios vizinhos, desconsolou fiéis de uma igreja restaurada e novamente destruída, criou uma cicatriz no peito paulistano e matou gente.
Há 40 anos, Caetano, que poetizava “A feia fumaça que sobe apagando as estrelas”, em sua obra-prima “Sampa”, não imaginaria que um dia a cidade também iria jogar aos céus toneladas de fuligem de destruição de sua história, de poeira de escombros de abandono e de restos de vida.
Tudo devido a sua indelicada maneira de ser ausente de fino trato. De parar para olhar para si e se banhar, tratar-se e aparar as rebarbas do tempo, dar nova chance a si e para os outros.
Em toda essa dolorosa cena, uma exceção se permite: um bravo bombeiro, em pleno Dia do Trabalho, esticando-se, misturando força e pavor, para tentar resgatar um dos homens da caverna urbana que clamava por socorro.
A imagem não poderia ser mais simbólica e mais punitiva. O edifício Wilton Paes de Almeida, um senhor de 50 e tantos anos, sucumbiu à falência de múltiplos fatores e descasos. Foi ao chão, em instantes. O homem, prestes a sair daquele inferno de labaredas, vai virar memória do quase, memória de erros plurais.
Aos bombeiros restam oferecer a misericórdia e a mão, depois de todas as mazelas sociais, políticas, estruturais, de planejamento e de cidadania. E eles não se furtam de cavoucar a brasa, não se cansam de enfrentar os horrores. Os bombeiros não se permitem deixar de cuidar daqueles aos quais só resta pensar: “Me tirem dessa agonia”.