A despedida da babá
Biscoita, minha filha Elis, de quase três anos, anda por esses dias mais rebelde que o desfile da Acadêmicos do Tuiuti, escola de samba do Rio que, neste ano, sapateou na passarela contra o governo Temer. A menina diz não para tudo, evita dar abraços apertados e choraminga para cumprir qualquer pedido do papai e da mamãe.
Paulistana, pitchuca também começou a puxar um erre de maneira peculiar: “Quero ir ao parrrquinho”, “Não quero comer carrrne”. Isso tudo, logo após a despedida de sua fiel escudeira por quase toda sua tenra vida, a baiana tia Ci, Horacina, sua babá, que se afastou do trabalho para cuidar de um problema de saúde.
A gente sempre achou que Elis fosse uma desapegada, que embora adorasse a amizade com a Ci, iria logo seguir o baile adiante depois de uma mudança de parceria. Nada disso. Ela alterou o padrão de comportamento, sempre pergunta onde está Horacina e tem nos deixado meio acabrunhados.
Não era para menos. Quem cuida de verdade acaba semeando sentimentos de companheirismo, de afeto, de cumplicidade e de amor. Juntas, elas “dançavam até o chão”, brincavam de aulas de uma língua estrangeira de um país só delas, apostavam corrida, escondiam-se debaixo de um lençol velho que virava cabaninha, ficavam quietinhas, cúmplices, quando algum dodói incomodava.
Migrantes do oco da taboca, trabalhadores, como eu e a mulher, não temos outra opção a não ser contar com uma profissional para ajudar a zelar da pequena. Valorize muito se pode você contar com os avós, com uma prima ou agregados na missão de pajear seus filhos.
No desgastante processo de tentar ocupar um pouco a lacuna deixada por tia Ci, embora a lógica nos empurrasse a pensar nas questões da segurança e nas habilidades para oferecer um trato cuidadoso à criança, passou-nos a ser também fundamental a demonstração de um afeição genuína pela infância, pelo cuidar do outro.
Das dezenas de pessoas que foram lá em casa atrás da vaga, raríssimas perguntaram “cadê a biscoita?” e, para nós, essa era uma senha para começarmos a abrir nossa esperança. Acolho todas as expectativas técnicas de ser um bom cuidador de velhos, uma babá de niños, mas há nestas ocupações peculiaridades ímpares que são inatas do “serumano” que transpira emoções do bem.
Elis não sente falta da tia Ci porque ela fazia em seus cabelos o penteado mais charmoso da escolinha, dava o papá e o banho sempre na hora certa ou porque ela nunca se cansava de brincar de massinha sentada no tapete da varanda.
Minha filha, precocemente, já está sentindo o impacto da perda de relações construídas com cumplicidade, ternura, comprometimento e seladas com aquilo que tanto falta no dia a dia nervoso, competitivo e hostil dos adultos: a alegria de estar com o outro, de poder contribuir positivamente com ele, de comungar a delícia de uma amizade.
Deixar a rotina com aquele que cuida tem sempre potencial de algum luto, de alguma necessidade de reconstruir partes do coração. Agora, fica a função de ensinar a Elis que relações, que sentimentos profundos podem perdurar pelo tempo e que ela sempre poderá ligar ou fazer uma visitinha à tia Ci, sua querida primeira babá.
jairo.marques@grupofolha.com.br