Ouvir crianças pode conter o ímpeto raivoso que torna a vida de gente grande uma chatice

Jairo Marques
Crianças que participam da série “Criança do Dia”

Ouvir uma criança com atenção, tentando subtrair dela suas angústias, suas vontades e suas dores é função bem mais desafiadora e de emprego de muita energia do que erguer a voz e falar por ela, do que emitir por ela opiniões ou desagrados.

Para escutar bem um pequeno, é necessário aprimorar sensações e manifestações que adultos costumam desprezar em um primeiro momento ou até pela vida toda. O imediatismo tende a ignorar as pernas que balangam ininterruptamente, o olhar cabisbaixo, o sorriso contido, o choro engolido.

Dia desses, trazendo minha biscoita de volta da escolinha para casa, interrompi seu cantarolar diversas vezes para me concentrar na notícia do rádio. E a menina insistia, em seu mundo imaginário, enquanto acompanhava o movimento da rua pela janela: “Meu supelelóóóóói… meu supelelóóóóóói…”

Semanas depois, jogado no sofá, dedico mais ouvidos à minha filha. Era véspera do Dia dos Pais e ela cantava com mais domínio e fôlego o que passou semanas aprendendo: “Meu super-heróóóói, meu super-heróóóói. Não tem capa vermelha, nem usa sua teia. Essa cancão é pra te mostrar, eu tenho tanto para falar do meu paaaaaaai.”

Gianlucca, um molequinho de cinco anos que convive com uma doença rara e degenerativa, comunica-se com os pais por meio dos olhares, do marejar dos olhos, com a força que ainda resta a ele nas pálpebras, que também têm dias contatos devido à evolução da doença negligenciada pela saúde pública.

Com delicadeza, a mãe vai traduzindo os sentimentos do garoto e, aos poucos, apaziguando as piscadelas agitadas, restabelecendo a harmonia do rostinho. “Calma que já vou trazer o seu suco, filho.”

Por outro lado, arvorar-se em defesa do que supostamente agride uma criança, como um homem pelado em um museu, ou insurgir-se contra pais que explicam a liberdade de gênero desde tenra idade aos filhos é bem mais motivador. Levantar o estandarte da moralidade em nome da boa infância, da infância respeitada, dá menos trabalho do que agachar-se para uma conversa com um pequeno.

Uma campanha recente nas redes sociais combatia o “namoro das crianças”. Embora eu entenda e comungue da ideia de não estimular precocemente que os pequenos tenham relações amorosas, acho bonito demais quando minha pitchuca abraça e diz que está com saudades de seu amigo Bebetinho ou da inseparável Louise. É bom dar atenção ao amor das crianças.

Dentro dessas perspectivas, é admirável a série de entrevistas “Criança do Dia”, publicada pela Folha desde o último domingo (1º) para marcar o próximo Dia da Criança, em 12 de outubro. Ler dos entrevistados mirins mensagens que remetem a demandas humanas contemporâneas, de críticas a mazelas sociais e de esperança no futuro, faz o dia bem mais prazeroso.

A preservação e a compreensão da inocência da criança, característica com poder de universalizar sua proteção e atenção, passa pela constante avaliação do papel dos adultos como mediadores da abertura das portas para o mundo, para a evolução humana, para novos valores conquistados ou construídos.

Talvez, ficar mais atento às vozes de meninos e meninas, raramente estampadas no jornal, seja uma maneira de conter os ímpetos raivosos, viciados e maniqueístas que tornam a vida de gente grande invariavelmente uma chatice.

Comentários

  1. Que bom ler seus escritos! Vejo que a ainda pouca idade da Elis já foi suficiente para escalá-lo no time dos pais presentes e atuantes. Essa interação cúmplice é fundamental para perceber com mais clareza e rapidez o que vai no íntimo dos pequenos, constitui porta de entrada para o diálogo e a lida até com situações mais complicadas. Minha sobrinha, hoje adulta, sofreu frequentes crises de depressão até os 10 anos de idade, e agradeço por ter sido na época parte importante da cura.

  2. O texto começou bem, mas fiquei com a sensação de que se perdeu na argumentação a partir do sétimo parágrafo. Podia ter pulado direto para o 10º. Talvez tenha sido uma tentativa de ‘esquentá-lo’ com notícias e debates recentes, e ainda incluir a série da Folha. De qualquer forma, valeu a reflexão.

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