Curiosidade e delicadeza

Folha

Em uma entrevista histórica conduzida por Clarice Lispector com o gênio Vinicius de Moraes, em 1979, o poeta surpreende o ritmo da conversa soltando a frase:”Tenho tanta ternura pela sua mão queimada”.

O que poderia ser oportunidade para sanar uma curiosidade ou alguma inquietação sobre as marcas da escritora, que anos antes havia se ferido em várias partes do corpo durante um incêndio em seu apartamento, tornou-se delicadeza e lirismo.

Poucos nascem com o espírito da leveza do poetinha, mas tentar ser menos cruel com aqueles que se apresentam curiosos, exóticos ou feios aos olhos da normalidade contribui de maneira determinante para encorajar o dia seguinte.

Quem mais se prejudica com o fuzilamento do olho torto, do olho inquieto à procura do defeito, do malfeito, do “malacabado” é a criança. Nenhum pequeno quer ser protagonista de suas deformidades ou diferenças em um tempo cuja preocupação deveria ser o brincar, o aprender as cores do arco-íris e a compreender que estar vivo é “maraviwonderful”.

A questão não é somente evitar a mirada inconveniente para aquele menino com uma síndrome rara e de aparência inusitada. O que tem potencial de construir positivamente cidadania diante da diversidade é a compreensão após a mera curiosidade. Mais do que educado, o olhar precisa ser ampliado, sofisticado, evoluído.

Esse processo começa, inclusive, dentro de casa, com pais, mães, irmãos e agregados deixando as perturbações do que parece estranho em seu ente querido para dar espaço ao que se entende por força de família: o amor acima de qualquer coisa, o encorajamento para enfrentar a rua, o apoio incondicional para se afirmar diante de seu ineditismo potencialmente desconcertante.

Uma experiência concreta disso está narrada na ótima obra recém-lançada da cantora Olívia Byington, “O Que é Que Ele Tem”, em que conta a trajetória de dores e conquistas de ter um filho –João, hoje com 35 anos– nascido longe do lugar-comum do bebê fofo e encantador e que cresceu guardando uma aparência incomum.

Penso ser legítimo perguntar a razão de um menino ir à escola levando um respirador ou por que a menina tem a pele escamosa, mas sanar a dúvida e acalmar a ânsia imaginativa não pode se esgotar em si só. Como se brinca com esses meninos? Como posso ser amigo deles? O que eles podem me ensinar e o que podem aprender?

Geralmente, experimenta-se apenas a curiosidade, seguida de um afastamento aterrador e doloroso, quando não a exposição do puro sabor do preconceito, o que forma adultos angustiados, temerosos, refugiados em si mesmos.

A humanidade sabe ser cruel para defender a imobilidade de sua representação tida como mais bonitinha: branca, elegante, esguia, completa fisicamente, absolutamente incompleta em caráter.

Mas o tempo em que o “anormal” vai ocupar seus espaços como o “novo normal”, mesmo que seja à custa de muito embaraço e incompreensão, está chegando e se instalando em vários campos sociais –se não houver esse movimento perto de você, preocupe-se, pois seu mundo parou! Ganha mais quem acolhe, compreende e poetiza a diversidade.

Comentários

  1. Sempre digo que as crianças não tem preconceito. Elas são impregnadas pelos adultos, pela família e os que vivem no entorno. Mesmo os pais da gente mal-acabada transmite preconceitos para nós, assim ficamos com auto preconceito, o que é difícil de encarar.
    Por isso, sempre digo que a inclusão sem aspas tem de começar com os trabalhos com os pais, sejam eles de crianças comuns ou de PcD. Bjs.

    Ps.: cai em Paris no último dia em minha estada lá e fui parar na emergência de um hospital público. Sofri um corte no supercilio. Quando fui atendida por uma médica do hospital, ela pergunta se as contrações que tenho na face são recentes. Eu tive que explicar a ela que tenho isto e que ando torto por causa da paralisia cerebral, que tenho desde quando nasci. É mole ou quer mais?

  2. Nasci com um olho torto e desde cedo sofri com o problema. Quando jogava futebol, perguntavam-me se eu estava enxergando duas bolas e alguns me chamavam de caolho. Não foi fácil suportar isso. Fui operado aos 13 anos para corrigir a vista, mas essa marca ainda por vezes me persegue após mais de sessenta anos. Assim, me solidarizo com todos os que passam por humilhações e peço o respeito dos que não tiveram o dissabor de ficar com alguma marca de disccriminação.

  3. Sou uma pessoa adultas assim: ” angustiada,temerosa e fechada em mim mesma. ” Tenho a constante sensação de não pertencimento; quase nunca me sinto à vontade, natural…e tudo isso graças aos olhares castradores viciados pelo preconceito.
    Exercitemos nosso olhar para a beleza, riqueza diversidade e acolhamos o outro com naturalidade.Seja ele quem for.

  4. Excelente seu texto… Delicado e contundente. Mas veja se você concorda comigo. Salvas muitas exceções felizmente, como querer que as pessoas poetizem a diversidade se a maioria ainda não entendeu o básico: somos todos diferentes e fora de padrão. Viemos todos cheios de defeitos de fabricação. Malacabados, sim, como você tão bem colocou. Alguns fisicamente, outros no caráter, e muitos na alma.

    1. Rose, não tenho como discordar. De fato, nos falta ainda o básico. Mas acho que meu papel é sempre querer mais! 😉

  5. Nossa que texto fantástico e cheio de verdades! Pra sociedade é ainda misterioso tentar compreender nós, os quebrados. Mas a gente segue vivendo porque nesse mundão moramos todos e a vida para todos também passa.

    Caba não mundão! Bjo, bjo.

  6. Gostei muito do ultimo paragrafo do texto. Tambem tenho pena daqueles que pararam no tempo e nao perceberam que as coisas estao mudando e hao de mudar muito mais.

  7. Cara você tem que se aceitar, acho que você tem algum problema com sua deficiência, esse termo malacabado é típico de deficiente que não se aceita

      1. Coitadinho do Jairo certamente é o cadeirante mais xarope do planeta. Para de mimi aceita que você é feio todo torto, e vai ser feliz.

  8. Sou a atriz cega que fez Anita em Caras & Bocas. Desde criança, e até hoje, sinto na pele o que Jairo escreveu no texto: “depois de nós satisfazermos pacientemente a curiosidade alheia, as pessoas se afastam de nós”, deixando uma pré-indisposição da nossa parte em respondermos tantas perguntas ao longo dos anos. Ontem mesmo, enquanto um vendedor preenchia meu cadastro, para a entrega da minha compra, outro ficou me interrompendo perguntando coisas sobre minha cachorra. Escuto muito a famijerada frase “não sei como lidar”. Será que é tão difícil nos tratar como clientes, alunos, estranhos? Ou vai me dizer que você sai perguntando para um estranho por aí por que ele tem uma bunda tão grande ou como faz para comprar roupas tão caras?

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