Entre o invisível e o excêntrico

Folha

No universo do povo “malacabado”, há dois extremos com maior dificuldade de compreensão pelo “serumano” tido como normal: a severidade ou a brandura de avarias em condições físicas, sensoriais ou intelectuais. Se o indivíduo babou demais pelo canto da boca, demorou muito para responder a uma pergunta ou não se manifestou da maneira mais óbvia que se espera em uma conversa, pronto, a casa caiu. Caso ele se declare quebrado e não aparente de maneira flagrante e óbvia a condição, o bicho também pega.

Diante de situações assim, o mais comum é julgar, metralhar ou ainda ignorar de mansinho o interlocutor, que pode ser tanto um idoso abalado pelos anos de vida como uma pessoa com uma síndrome rara que carece de mais tempo para se organizar em uma prosa.

Pode ser alguém com esclerose múltipla, cujas manifestações da enfermidade podem não se dar de maneira clara como “puxar de uma perna” ou ainda alguém que, embora consiga ficar em pé, dar uma pequena caminhada, usa cadeira de rodas porque não resiste a esforços.

Ser arredio e pouco receptivo diante de um comportamento desconhecido não merece punição em praça pública, mas dar chance ao outro –ao diferentão– e a si mesmo de entender mais a diversidade humana traz ganhos para a construção de uma sociedade plural.

Há semanas, participei de um evento em que, na plateia, uma garota aguardava ansiosa para trocar ideias com este reles escrevinhador de pernas finas. Ana Raquel foi sorteada pelo destino com uma doença neuromuscular chamada distonia, que provoca nos contemplados movimentos involuntários e postura descompensada. De quebra, ela também tem deficiência auditiva grave e fala com dificuldade.

Em um mundo em que as mensagens do WhatsApp pulam na tela do telefone o tempo todo e as notificações das redes informando que chegaram bobagens para ser apagadas não param, prender a atenção em uma pessoa que fala, ouve e se movimenta com vagareza e certo exotismo parece tarefa de doidivanas.

E que bom que nunca fui muito certo das ideias. Falar com aquela articulada moça, entender seus desafios de vida e suas conquistas –é uma das melhores alunas da Unesp de Bauru– e analisar a minha própria tolerância diante de situações novas de viver me alegrou a alma.

Experiência semelhante tive em uma casa de repouso. Diante da impaciência de filhos para entender o que os pais queriam dizer, mal abrindo a boca, apenas balbuciando frases sem sentido, uma visitante soltou no ar: “Não importa saber exatamente o que os velhos muito debilitados querem dizer. O fundamental é tratá-los com carinho, emitir um bom sentimento durante um abraço. Eles podem não se fazer compreender pelas palavras, mas vão captar uma boa emoção transmitida”.

Uma certa invisibilidade da deficiência também causa zum-zum-zum, da mesma maneira que seus aparentes exotismos. Um rapaz que desfilava em uma cadeira de rodas com a tocha olímpica e levou um capote, amparando-se em uma perna para evitar rachar a cara no chão, foi acusado de larápio. Depois de lavada a roupa, viu-se que ele tinha mesmo uma deficiência.

Às vezes, ser cego, ser “malacabado”, ser “tchubirube” é apenas uma questão de perspectiva.

Comentários

  1. Estou de pleno acordo com o José Vitor da Silva. O indivíduo não precisa ser um PcD para tentar compreender um diferente dele e respeitá-lo como ele é, como todos os humanos. E as perguntas que ele faz também são muitissimo pertinentes. Parabéns José Vitor e a você Jairo, sensível como sempre. Bjs.

  2. Jairo Marques, com sua contumaz inteligência toca em um ponto e me faz pensar; ao me aproximar dos setenta e um anos de vida pergunto-me qual tem sido o meu comportamento frente algumas situações descritas pelo articulista. Qual tem sido a minha perspectiva, ou seja, se tenho dado a devida atenção e respeito diante de algumas dessas situações? Não sou “malacabado” nem “tchubirube” (portador de necessidades especiais). Jairo Marques brilha, também, ao colocar essas duas expressões entre aspas. Não é necessário ser muito inteligente para sabermos que ninguém é “malacabado” nem “tchubirube”. Acima de tudo, respeito, pois isso nada nos custa.

  3. O cara pode não ser mal acabado e ser um burro que fez concurso e foi pro serviço público.

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