Antes de abortar

Folha

Pouquíssimas chances de viver estão restando aos bebês com microcefalia. Por aqui e por ali leio que eles “choram demais”, têm o cérebro completamente comprometido, têm deficiência visual, são abandonados pelos pais, pelo governo e nem as almas querem encarnar naquilo.

A ciência e a medicina ainda não conseguiram demonstrar com exatidão como o vírus da zika afeta o cérebro do feto nem quando ele agiria, mas são capazes de prever que vida decente ele não terá e que será um “serumano” imprestável diante dos desafiantes caminhos de ser gente em nosso tempo.

Tomar a decisão do aborto parece ser a mais tranquila e menos dramática para todos, inclusive para a sociedade, que não terá de lidar com esse problema a mais.

Encarar, amar e fazer evoluir um filho nascido em desacordo com tudo o que se acha normal seria uma estupidez, quase uma ação bárbara diante a modernidade de corpos sarados à base de granola e malhação.

Embutidos na ação de gerar um novo ser estão desafios ocultos que empoderam –e fazem sofrer, evidentemente–, colocam convicções contra a parede e ensinam maneiras diferentes de encarar a realidade. Cada vez mais, porém, parece que o legítimo, o correto e o “descolado” é saborear apenas a bonança.

Milhares de pessoas convivem com deficiências bastante incapacitantes, em diversos níveis, no mundo. Um punhado delas, com apoio, com acesso a intervenções diversas desde o nascimento, com entendimento de suas necessidades, evoluem a ponto de ser quase aquilo que se espera em um porta-retratos de uma família perfeita.

Não cabe nestas linhas discutir o direito da mulher de tomar as decisões que melhor lhe convierem sobre o seu corpo e o seu ventre, mas a legitimação do arrasto de uma geração para o esgoto aflige quem habita a terra das ditas imperfeições físicas, sensoriais ou intelectuais.

Cada pai e cada mãe que abraçam um filho com deficiência, embora, potencialmente, abriguem alguma frustração na mente, amam cada centímetro de seus pés tortos, dão risada em algum momento com suas doidices, jamais o abandonariam à própria sorte.

O espanto e a tragédia da microcefalia têm gritado com muito mais força do que sentimentos de resiliência, de transformação de pingos de vida em cachoeiras de possibilidades de ser feliz e de promover felicidade.

Sem encorajar de maneira robusta e contundente as famílias afligidas, o ato de abortar como medida higienista da raça humana tende a ganhar mais e mais terreno, sempre resguardado pelo terror da incapacidade futura do bebê e do pânico de não ter uma fofura deitada no berço.

Defendo o livre arbítrio, mas não me conformo com a ocultação do outro lado, extremamente mais frágil, desta avalanche provocada por uma doença não totalmente mapeada, entendida e projetada. Não me conformo com o tom de piedade gerado em torno de quem decide seguir adiante e botar garras de bicho selvagem na defesa de sua cria “mal-acabada”.

Não, não gostaria de ter um filho microcéfalo cheio de limitações e que consumisse a maior parte do meu tempo, dos meus recursos financeiros e das minhas emoções, mas não pautaria uma decisão de ter ou não um bebê com deficiência severa em avaliações simplistas, mecânicas, individualistas, baseadas em medo, vaidade ou supostas incapacidades pessoais.

jairo.marques@grupofolha.com.br

Comentários

  1. Bom, a “interrupção médica da gravidez” existe como possibilidade na França como uma opção quando existe uma deficiência grave do feto. Se a família quiser, a gravidez é interrompida. Se não quiser, não é. E eu acho justíssimo que se tenha a opção. Cada um deve saber de seus próprios limites e tomar suas decisões de acordo com eles. E eu não tenho nada a dizer, nem a julgar, da decisão de um outro que não sou eu, não pensa como eu e não vive minha vida. Assim como não aceito julgamentos de outrem. Eu não posso saber onde aperta o sapato do meu vizinho. E se aperta na incapacidade de cuidar de uma criança polideficiente, que ele decida o que fazer com isso. Julgar é sempre mais fácil…

  2. Homem que é homem, não abandona sua parceira pelo fato dela estar gerando uma criança, filho dele também, que não irá se enquadrar da definição de bebê fofo, como vem sendo noticiado pela imprensa. Pai também deve amar incondicionalmente.

  3. Vivemos em um país onde a desigualdade social, afeta a capacidade de discernimento das pessoas. O naufrágio de uma república, resume-se em questionar sobre a liberação do aborto, diante de uma vergonhosa epidemia que ganhou a mídia porque há uma repulsa(medo), de macular as olimpíadas.Diante desse quadro em que a mulher pobre é refém de sua condição financeira, deveriam acrescentar a microcefalia como opção de aborto. Agora utilizarmos a situação deplorável deste país para liberar o aborto, seria uma dupla covardia, fazer o jogo de um governo de assassinos que elimina seres humanos por falta de programas de esclarecimento sobre como evitar criadouros de mosquitos e premiar mais uma vez a saída à moda bolivariana.

  4. Li o texto e li as respostas aos comentários. Em ambos os casos percebi uma tentativa de demonstrar uma postura respeitosa com a afirmativa “não julgo”.
    Respeito verdadeiro é defender os direitos das pessoas à tentativa de viver. A maioria da população na nossa sociedade sobrevive. Alguns poucos vivem ao explorar essa sobrevivência da maioria. E outros poucos despertam o olhar para a necessidade de lutar politicamente pela possibilidade de viver.
    Vamos falar das realidades? O aborto é legal no Brasil nas seguintes situações: quando há risco de vida para a mulher causado pela gravidez, quando a gravidez é resultante de um estupro ou se o feto for anencefálico. Para além dessas situações o aborto é considerado crime. Entretanto, é realizado. Para as mulheres que se encontram em uma boa condição financeira ele é possível e seguro (mesmo que ilegal). Para as mulheres que não têm boa condição financeira (a maioria das mulheres no Brasil) não há essa opção; ou ela será obrigada a gestar e ter o filho, ou se arriscará em procedimentos que podem resultar na sua morte.
    NENHUMA mulher encara o aborto como a opção “simples”. Independente de ter uma religião, de se atormentar por se arriscar ilegalmente, ou de ser julgada por outras pessoas, o aborto é um processo traumático para a mulher.
    Ter uma opinião a respeito de alguém decidir pelo aborto, julgar essa pessoa, é algo que pode ser individual seu e você pode fazê-lo na sua vida privada. Negar o direito das pessoas de decidirem pelas suas vidas é que é o problema. Você poderia inclusive afirmar categoricamente que jamais decidiria por um aborto, mas ainda assim deveria lutar pelo direito do outro ter a possibilidade de decidir isso para si. É a vida de cada um. Ao se declarar contra, ou “neutro” você está colaborando para que esse direito continue a ser negado a todos/as.

    “Sem encorajar de maneira robusta e contundente as famílias afligidas, o ato de abortar como medida higienista da raça humana tende a ganhar mais e mais terreno, sempre resguardado pelo terror da incapacidade futura do bebê e do pânico de não ter uma fofura deitada no berço.”

    “Higienista” é continuar a negar à maioria da população as mesmas possibilidades que já estão ao alcance de quem tem condições financeiras para decidir os rumos de suas vidas. Acho individualista falar sobre algo que está afetando uma grande maioria de mulheres pobres e usar argumentos com “pânico de não ter uma fofura deitada no berço”. Porque assim você está ignorando as pessoas que mais são afetadas por essa crise. O “pânico” da maioria dessas mulheres que hoje não têm a opção do aborto é de não conseguir sobreviver e garantir a sobrevivência de uma pessoa que será para sempre sua dependente. São mulheres que já tiveram outros direitos negados, mulheres que não tiveram acesso a uma orientação e conhecimento que as informasse sobre educação sexual e planejamento familiar. Mulheres que não têm condições materiais para realizar um planejamento familiar. Além de mulheres que ficam sozinhas para cuidar dessa criança (e que talvez já cuidem de uma mãe ou pai ou tia, ou já tenha outros filhos).

    1. Obrigado por compartilhar sua opinião. Embora vc tente desvirtuar minha argumentação, um ambiente plural nessa discussão é o que precisamos. Um abraço

  5. Muito bem descrito o problema, mas, igualmente sem tentar interferir nas decisões pessoais das mulheres, o que fica evidente é que aquelas que têm recurso financeiros mais uma vez se privilegiam, pois em caso de optarem por fazer um aborto, elas têm mais chances que aquelas menos privilegiadas financeiramente e isso causa um grande problema social, que é muito mais abrangente do que pode parecer a incautos.

  6. perfeito. Defendo o livre arbítrio, mas não me conformo com a ocultação do outro lado, extremamente mais frágil, desta avalanche provocada por uma doença não totalmente mapeada, entendida e projetada. Não me conformo com o tom de piedade gerado em torno de quem decide seguir adiante e botar garras de bicho selvagem na defesa de sua cria “mal-acabada”.

    Não, não gostaria de ter um filho microcéfalo cheio de limitações e que consumisse a maior parte do meu tempo, dos meus recursos financeiros e das minhas emoções, mas não pautaria uma decisão de ter ou não um bebê com deficiência severa em avaliações simplistas, mecânicas, individualistas, baseadas em medo, vaidade ou supostas incapacidades pessoais.

  7. Prezado Jairo,

    Já pensou se tudo o que não fosse “belo” deveria ser descartado? A criança pobre que mora nas ruas, o idoso abandonado pela família por dar muito trabalho. Não estamos falando de objetos, mas sim de pessoas. Eliminamos roupas, calçados e outras coisas pois os mesmos não possuem vida. Agora, dizer que nem alma querem encarnar naquilo? Você já viu o rosto da criança? A alma encarna na vida das pessoas mesmo antes dela ter uma face, no momento da concepção, independente da forma, cor ou raça da pessoa. Hoje, eliminamos as crianças com microcefalia. Amanhã, os com síndrome de Down. Aonde iremos parar? Precisamos ouvir mais a Deus e menos os homens.
    Quanto ao sentimento das mães? Mãe que é mãe, ama incondicionalmente!!!!!!!

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