O exército dos inválidos

Folha

Cansei de me atualizar sobre o número de bebês que vão nascer microcéfalos no Brasil depois, ao que tudo indica, da ação de um vírus carregado por um mosquito. Só sei que, de onde parei de somar, caso nada seja feito de concreto para recuperar o que for possível da qualidade de vida das vítimas e de suas famílias, o que é sempre uma hipótese no Brasil, já se vê a chance de formar um exército de inválidos.

Em tragédias, sempre me dói mais imaginar o breve futuro de abandono dos atingidos do que entender a fatalidade em si, do que acompanhar o corre-corre do governo para pedir que a população use burca para não ser picada, do que ouvir as exaustivas e desconcertantes explicações dos resultados de ter a estrutura cerebral corrompida.

E reconheço que há uma causa própria nessa maneira de pensar, uma vez que eu mesmo me tornei o que sobrou da onda devastadora de paralisia infantil em solo e ar nacionais na década de 1970.

Defendo, contudo, que há o que preste em meu modo de articular as ideias. Uma ação rápida de suporte médico e terapêutico a esses bebês —e a quaisquer outros com comprometimentos semelhantes— pode determinar a formação de um indivíduo ativo em sociedade, ainda que à sua maneira, um pouco descompensado aqui, um pouco avariado ali. Isso é o de menos.

A recuperarão para a dita normalidade de crianças abatidas por desgraceiras na cachola é absolutamente realizável em nações mais desenvolvidas e inclusivas.

A chamada intervenção precoce —uma série de medidas terapêuticas atuando em conjunto a partir do nascimento do bebê até os três anos— tem reconhecimento de resultados até em casos dados como gravíssimos. Aquilo que não serviria para nada, desenvolve-se, fala, anda, articula pensamentos e ama.

Evidentemente, é fundamental que seja respeitado e considerado aquilo que a ciência traduz como “totalmente inviável para a vida” e que as mães —ou a natureza— tenham o legítimo direito e razão de decidir que providências tomar.

Mas o sucesso de ações de reabilitação está atado também a uma intervenção que motive a família, que tire o aspecto de velório e de
derrota de um nascimento sem explosão de espumantes e que divida a conta pesada de criar um indivíduo diferente.

O ganho nesse investimento humano é coletivo, pois com ele será fomentada a construção de um cidadão que pode consumir, pode trabalhar (vencidos preconceitos
escrotos e visões torpes), pode contribuir para a coletividade. O impacto das despesas com a invalidez é bem mais poderoso.

Afora toda a racionalidade, há o amor incondicional presente em diversos pais, mães e irmãos desses “serumanos” atingidos que, por si só, já teria de ser suficiente para gerar mais mobilização contra a formação de um exército cuja existência muito se lamenta e pouco se faz para que seja armado.

Lamentavelmente, em diversos níveis sociais, ainda se prefere
chorar por uma geração perdida, cujo tamanho pode ser aterrador, a atuar por mais dignidade a ela. Oxalá eu esteja errado e que uma nova mentalidade a respeito de recuperação de pessoas seja formada a partir da legião de microcéfalos inocentes a caminho.

Comentários

  1. Olá! Apareci!
    Li seu texto e concordo com você. Ainda há muitas crianças e, por que não, adultos em “depósitos” de PcD. Ainda bem que está aumentando o número de pais e mães que estão acordando, não acreditando em médicos que dizem que as crianças que nascem com alguma deficiência não irão a lugar nenhum e corre atrás de tratamentos adequados para este filho mal acabado e ter a esperança de que este faça algo na sociedade.
    Eu também espero que esse exército de crianças com microcefalia e outras venham ao mundo com menos preconceitos e menos intolerância, mas eu penso que esse mundo sonhado por nós ainda está longe, infelizmente. Mas nós vamos lutando por um mundo melhor, não é mesmo?
    Bjs. e bfs

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