O velho e a saudade
Fazia uns três meses que ele não me ligava para repercutir o calorão, para falar mal da Dilma ou para dizer que a caixa onde guarda meus textos em papel-jornal está transbordando. Mas eu sabia que ele precisava de algum tempo, de algum silêncio para se aprumar novamente diante da nova vida.
– Ela não conseguiu terminar o vestidinho que fazia para a sua Elis, filho. Ficou aqui, pela metade, igual eu também fiquei. Está muito difícil aguentar a saudade, foram 50 anos de amor. Sinto como se escutasse a voz dela saindo pelas paredes.
Meu avô do coração (nada temos de parentesco real e jamais nos vimos pessoalmente, apenas trocamos missivas e falamos ao telefone) perdeu a companheira para a morte e, como qualquer outro velho octogenário que amou demais, ficou com o coração em descompasso e a cabeça transformada em turbilhão de interrogações sobre o futuro.
Desatei como pude o nó na goela e fui pensando em algo razoavelmente acolhedor para dizer a meu avô. Reparei, porém, que só bobagens saíam do meu saco de possíveis palavras de acolhimento para a inédita situação.
– O senhor ainda tem muita lenha para queimar, vô; na internet tem tanta distração hoje em dia, que tal curtir umas fotos bonitas no Instagram?
Diante de meu fracasso, ele mesmo veio com um remendo de solução para estancar nosso mimetismo de emoções sinceras.
– Talvez eu vá passear em Niterói, ver meus outros netos. Tem sempre alguém me ligando, me chamando para fazer um passeio. Até me distraio um pouco, filho, mas a falta que ela me faz machuca, não passa. Nunca passa.
Os versos de Alceu Valença sobre a solidão parecem ser ainda mais pontiagudos quando são entoados na radiola dos velhos: “A solidão é fera, a solidão devora/ É amiga das horas, prima-irmã do tempo/ E faz nossos relógios caminharem lentos/Causando um descompasso no meu coração”.
Pouco se sabe sobre como agir de maneira efetiva para amparar o sentimento de abandono profundo de alguns idosos quando perdem seus parceiros de trajetória. Muitas vezes, a preocupação logística –quem dará o remédio, quem auxiliará com a senha do banco– sobrepõe-se a uma preocupação mais acolhedora, como ajudar a dar banho no cachorro ou pedir para contar aquela história hilária da tia que torceu o rabo da porca.
Ver a companheira ir embora na velhice pode significar expôr-se à descompostura diante do micro-ondas em que só ela sabia mexer, pode representar perder o ânimo de manter o ninho vazio na esperança de que, todos os dias, seja primavera, pode atazanar o pouco sono que resta porque o corpo não se acostuma com a ausência daquela mão que acalentava o peito no derradeiro momento de fechar os olhos.
Para os envolvidos, resta preparar com afinco um elixir poderoso que atenue essa saudade sofrida e essa solidão desoladora. Uma boa alquimia sempre nasce com disposição de entender e de ouvir. Não há razão, nos tempos da comunicação extrema, para apenas contemplar os velhos em seus refúgios de lembranças e não tentar trazê-los para novas possibilidades. Recomeçar é sempre possível.
Parabéns pelo texto, e principalmente pela sensibilidade e carinho com o seu “avô”!!! Com certeza essas palavras farão ele chorar, mas de emoção e felicidade!!!
Muito obrigado, Alexandre… meu “avô” muito me inspira a viver melhor! Grande abraço
Jairo, procuro seu texto na Folha, e sempre me emociono. Na maioria das vezes respiro fundo para continuar a ler. Não sou chorona não, é que suas palavras traduzem tantos sentimentos. Meu pai faleceu ano passado depois de 55 anos de casamento com minha mãe, cheguei até a mandar a história da vida dele pra folha publicar no obituário, saiu com o nome “Apaixonado por sua eterna namorada”. Parabéns por sua sensibilidade e seus textos imperdíveis. Raquel
Raquel, que carinho gostoso!!!! Vou procurar o texto aqui.. Um abraço
Toda semana leio seu blog, cada dia me encanto mais!
Belo e delicado o seu texto. Realmente nenhum conceito fechado vai abarcar essa dor. Ela é intransferível.
Jairo, adorei teu texto. Toca no paradoxo que nos caracteriza humanos. A permanente percepção do fim da existência, ao mesmo tempo que abala o sentido de aqui estar, torna leve e autêntico nosso viver.
Obrigado, Homero. Penso que muitos outros aspectos por trás dessa reflexão ainda ficaram ausentes, mas é um começo! Abraço
Lindo vamos praticar com os que estão a nossa volta!
Jairo, lindo texto. Parabéns sempre.
Bjs
Obrigado, queriiiida!
Belo texto, como sempre. Aqui em casa eu já decretei: eu vou primeiro. Minha cota de saudades já tá preenchida, e assumo minha covardia. Não suportaria um único dia sem minha Eliana.
Bela declaração de amor, embora triste! 😉
Algumas pessoas têm vergonha de serem saudosistas. Mas, como não sentir saudades dos bons tempos vividos em boa companhia? Seguir a vida, prazerosamente, requer saúde e boa situação financeira em época de capitalismo desenfreado. Poucos conseguem…Mais barato sonhar/lembrar um bom passado que conviver com um mau presente…
lindo!!!!
Lindo Texto!
Senhor Jairo Matos
Sua descrição é perfeita. Oxalá, digo isto com absoluta sinceridade o senhor jamais passe por essa dor. É tão profunda que às vezes sinto o coração parar. Mas…. ele não para, infelizmente. Comigo foram 54 anos e apesar da boa condição financeira e do estado físico bastante razoável sinto-me perdida. O sol parou de brilhar, Valeu viver um grande amor, mas a dor da perda é sufocante. Obrigada pela crônica.Cordialmente
Magdala
Magdala, obrigado quem tem de dizer sou eu a vc por sua sinceridade cortante. Sua fala reforça meu texto, embora eu insista que haja formas de amenizar um pouco a tristeza… um grande abraço
Parabéns pelo texto!
Não vivi ainda, mas certamente viverei estas linhas…
Abraços!
Que triste, Alessandro…