A dura vida de um repórter cadeirante

Folha

Mesmo não andando uniformizado e tendo o corpo esculpido pela cevada, já tive de responder umas dez vezes que, não, não sou um esportista cadeirante perdido aqui pelas ruas de Toronto, no Canadá, onde faço a cobertura dos Jogos Parapan-Americanos.

Parece ser universal a associação entre ter uma deficiência e não poder desempenhar uma função que exigiria ser um astuto andante que pode sair correndo atrás de uma notícia, mesmo sendo ela uma manifestação múltipla, não dependendo apenas e necessariamente de um microfone colocado na boca de um cidadão esbanjando frases feitas.

Muitas vezes, os meus maiores perrengues em ser um repórter sobre rodas não estão relacionados à prática jornalística em si, mas a fatores outros que fogem a qualquer tipo de qualificação ou tarimba que eu tenha adquirido ao longo dos anos.

Logo na chegada ao hotel onde estou hospedado, uma surpresa “maraviwonderful”: não havia mais quartos acessíveis para pessoas com deficiência e não adiantava dizer que a reserva tinha sido feita especificamente para esse fim.

— Ah, mas temos uma suíte grande, confortável. Dê uma olhadinha.

Como você imagina um quebrado das partes tomando banho em uma banheira? Eu ficaria “em pé um pouquinho”, o que é impossível, transferiria o corpão para a tina e delícia?

Acabei acomodado em um quarto sem banheira, cujo espelho é tão alto que não vejo meu rosto há cinco dias, e onde eu mesmo criei uma adaptação para o banho: uma cadeira supostamente firme que fica posicionada mezzo box, mezzo fora, um luxo.

O que importa, porém, é conseguir fazer uma boa cobertura noticiosa. Banho bacana tomarei em casa. Na primeira entrevista coletiva de que participei, cheia de colegas brasileiros, quase fiquei tetraplégico com o alvoroço dos amigos fotógrafos e cinegrafistas ávidos por uma imagem do ex-corredor Joaquim Cruz, que, no Parapan, vai ser guia de uma atleta cega dos EUA.

Entendo a velocidade da informação, mas acho curioso que, em um evento onde os holofotes estão virados, em uma oportunidade rara, para o povo “mal-acabado”, não haja um tiquinho de sensibilidade com as necessidades da diversidade. Às vezes, chego a pensar que é tudo para inglês ver.

Nas arenas de competições, mais uma vez, percebo que, de fato, eu devo ser um bicho raro. A tribuna dos jornalistas convencionais tem de tudo para um bom desempenho da comunicação: luz, tomada, mesa. Para o jornalista cadeirante… “Señor, no pode stay here”, costumam dizer os intrépidos voluntários quando me veem chegando à área de imprensa. Em geral, mostrar a credencial tem resolvido. Até uma mesa, dia desses, conseguiram para mim.

Não há nenhum carro em que eu caiba na delegação brasileira de imprensa. “É tudo van, ‘cê sabe como é, né?” Tenho usado o transporte público e o oferecido pela organização canadense dos jogos. Quando o “motora” se lembra de fixar minha cadeira nos dispositivos de segurança, as viagens são até confortáveis.

Enquanto o olhar sobre a diversidade for baseado na perspectiva dos que querem apenas dar um jeito na demanda reprimida, e não incluir de fato, ser repórter cadeirante, ser fora da curva dos padrões físicos e sensoriais, em qualquer lugar do planeta, vai representar um problemão.

Depois disso, entro em férias! A coluna volta em setembro.