O sorriso do bebê down

Jairo Marques

Conheci Eduardo na fila mais ingrata que já enfrentei na vida: a que dava acesso à entrada da UTI neonatal, local que ele teve de frequentar por 31 dias na missão de soprar esperança e forças para que seu Enrico não desistisse de vingar e de ser felicidade para a família, tivesse ele a condição que fosse.

Tudo naquele bebê indicava um fatídico “tinha de ser”. A mãe, Fernanda, contava com menos de 5% de chances de ter uma gravidez natural, mas ele foi concebido assim mesmo, sem a participação de tubinhos. Depois disso, ela corria alto risco de uma trombose, o bebê ficou quietinho e cresceu muito bem no ventre, sem sobressaltos para ninguém.

Teve ainda o resultado de exame que alertava para uma possível alteração cromossômica, que poderia abrir caminho para um sugerido “descarte” clandestino do feto, o que sempre foi refutado pelos pais sob qualquer manto de justeza. Acalmaram-se em uma segunda análise em que Enrico já aparecia aprumado, pronto para ser gente comum.

Mas, “tinha de ser” e estava dado o drible na ciência e na tecnologia, o bebê nasceu down. A síndrome foi detectada explicitamente, ainda na sala de parto, apenas no cruzamento dos olhos de amêndoa do menino com a tensão e curiosidade do pai e com o preparo técnico do médico. A mãe, encantada e cansada, só acolheu o filho e sua verdade horas depois.

A notícia de uma anormalidade em um recém-nascido projeta imediatamente nos envolvidos uma jamanta lotada de frustrações, desafios, privações, tristezas e complexidades para seguir adiante. Fugir ao normal, ainda mais com um comprometimento intelectual, é sentença que muitos assumem terrível sem nem ler e conhecer o processo em detalhes.

Não cabe a mim descortinar as dores que um bebê down pode representar diante de expectativas de um filho que seria o mais puro creme do milho, mas o que posso garantir é que a graça natural desses meninos e meninas de olhos repuxados desviam a imaginação para valores mais complexos do que o sucesso financeiro e a realização de grandes feitos.

Na primeira fotografia que vi de Enrico, ao lado de sua família, só o que me chamava a atenção era um sorrisinho gostoso que brotava dos cantos de seus lábios e que traduzi como “é bom estar por aqui com vocês, que venham os meus desafios, que se destravem as portas da ignorância e que cada um possa ser e se manifestar da maneira que puder, que melhor lhe convier”.

Ter uma deficiência não é mérito, não é bonito, não é desígnio, não representa um troféu nem é presente do destino, que me desculpem os que pensam dessa maneira e tratam os “felizardos” como pacotes especiais caídos dos céus, mas nascer com down também não pode forjar em um bebê destino de tristeza e incapacidades.

É na infância down que se irá determinar se daquela boca miúda sairão palavras de afirmação e de contentamento consigo mesmo no futuro, se dos movimentos mais lentos virão grandes atos como apaixonar-se e praticar aventuras, se de seu desnível intelectual irão eclodir feitos como mostrar ao vizinho que as diferenças estão em todos os viventes.

Sendo assim, torço por Enrico e abraço com carinho o Eduardo, a Fernanda, o Bruno, a Carla…

Comentários

  1. Minha filha tem síndrome de Down e a vejo sim como um presente de Deus, como qualquer filho. Seu texto é muito bem escrito. Pessoas com deficiência nos ensinam a valorizar pequenos gestos, como o andar o falar, o se vestir sozinho… Como me sinto feliz em cada conquista dela. Não e fácil, mas não é impossível ser feliz, muito feliz! Apesar das diferenças.

  2. Oi Jairo! Seu texto está muito bom! Fico pensando em minha mãe quando ela ficou sabendo que eu não iria ser “normal” como todas as crianças. Depois de tantos perrengues nas nossas vidas de tantos anos, minha mãe me disse que ela aprendeu muito comigo e meu pai também disse isto para mim. Eles ainda acrescentaram que aprenderam muito com os meus amigos deficientes.
    Na época em que nasci e cresci, todos acreditavam que os pc eram todos rebaixados intelectuais. Aliás, até hoje tem muitas pessoas, inclusive médicos que acreditam nisto. Sei disto porque ouvi no ano passado de um médico que me atendeu no pronto socorro do Sírio Libanês, que ele pensava que TODOS os pcs eram defs intelectuais. Fico pensando aqui se os downs são realmente defs. intelectuais, porque eu leio muitos textos em que há downs que são donos de lanchonetes, professores, jornalistas, deputados (há uma na Espanha) etc. Será que não está na hora de repensarmos esta idéia de que os downs são rebaixados intelectuais?
    Assim como os pcs., se os pais estimularem desde cedo seus filhos com a sidrome de down, eles podem vir a ser profissionais competentes e pensantes, não podem?
    Desculpe-me mais uma vez, por eu ter colocado aqui a minha “viagem”.
    Beijos.

    1. Su, eu achei, simplesmente, BRILHANTE, a sua viagem! Faz todo o sentido. As convenções não podem parar no tempo. A partir do momento em que os downs mostram capacidade e habilidades que qualquer pessoa tem, não faz sentido o “rebaixamento”… muito interessante!!! Beijosss

  3. De fato ter um ente querido com deficiência está longe de ser uma dádiva, não é mérito e pode não ser bonito, mas aprendi a ver o fato de um ângulo que diria gostoso, porque me permitiu crescer e aprender muito, além de – percebi depois – me transformar numa pessoa menos mimimi.
    Seu texto em diversos momentos me remeteu a 1987, quando minha filha nasceu pra mim, e trouxe de volta lembranças hoje queridas de momentos que não foram propriamente tranquilos (porque recheados de insegurança e medo) mas que também trouxeram fortalecimento espiritual e suscitaram uma força que veio não sei de onde e me permitiu enfrentar a tudo e todos com um destemor que não conhecia.
    Sua pena emociona, como sempre. Obrigado.

    1. Negão, eu deveria ter escrito isso… que “se aprende a pensar diferente”, né? Ótima observação!

  4. Que texto lindo Jairo, você se superou. Minha família passou por algo assim é hoje nossa bebezinha Isabele é o amor maior da família e nos surpreende a cada dia. Grande abraço

  5. Copio e reitero cada palavra do Sidney Dutra. E acrescento um pouco mais: seu texto é banhado de humanidade. Parabéns!

  6. Lindo texto, sabemos que a deficiência não é o fim, mas sim um jeito diferente de ser e é aí que está o segredo da vida. Que o Enrico cresça e se desenvolva como o criador da vida determinar.

  7. Discordo do texto em dois pontos: quando ele fala que o sorriso compensa a falta de grandes feitos, considero essa visão determinista. Ora, o fato de uma pessoa ter down ou qualquer outra deficiência, dificulta sim a realização de tais feitos, porém não impede. Sobretudo porque temos avançado bastante no que concerne os direitos e as conquistas por igualdade. Outro ponto é quando ele fala “me desculpem quem pensa assim”, sobre o fato de algumas pessoas se considerarem sortudas por terem uma pessoa deficiente. Aqui há outro ponto perigoso: a sorte mencionada não reside no fato de terem uma pessoa deficiente, mas sim de ter aquela pessoa. Isso acontece com todos os pais, seja de pessoas deficientes ou não. Eles queriam justamente aquele filho e não o trocariam por outro. A pessoa não se resume à deficiência.

    1. Obrigado pelas observações, Luciana. O texto é uma crônica livre, não um tratado semântico da deficiência. Um abraço!

      1. Então, justamente fiz as observações por já ter procurado informações sobre o tema e considerar importante divulgar informações mais compatíveis, eu diria. Vi no texto uma boa intenção, então, aproveitei o fato para acrescentar reflexões relevantes. Abraços pra vc também.

  8. Jairo: já vi livros infantis escritos por crianças com “Down”, num projeto que meu filho (que é professor de Português) empreende em algumas escolas no Brasil, patrocinado pela fundação Lehman. São maravilhosos, cara!

    1. Esse é mais um, dentre tantos exemplos, grande feito perfeitamente possível a um indivíduo com síndrome de down. Muito legal.

  9. Acabo de receber “a capa” do Jornal, e sua matéria foi a que mais se destacou e me interessou de ver.
    Minha 1a. filha foi concebida por tubinhos e foi nos proposto que se fizesse um teste genético que nos indicasse se haveria problemas cromossômicos, no qual após alguns segundos de pensamentos, descartamos (por que tambem já faria um projeto caro, ficar mais caro ainda e pior: exigia mexer no zigoto, retirando células, o que poderia sim; acarretar problemas). Durante o pré-natal foi feito um outro exame (por ultra-som, portanto menos invasivo) que indicava na região da nuca do feto se haveria algum problema, portanto aceitamos, claro.
    Não houve problemas e a Mariana nasceu normal (e até muito bagunceira em seus primeiros anos). Hoje ela tem 11 anos e é quase uma “aborrescente”.
    Mas desde os 1os. segundos que soubemos que ela estava a caminho, foram segundos, minutos, horas, dias, meses e anos de angustia, pois os corações dos pais nunca mais terão a sensação de segurança em relação aos filhos, isso vale para qualquer filho, com ou sem deficiências.
    Esta semana fiquei sabendo que está se tornando comum estes exames para que se decida o que fazer durante a gravidez. É um problema muito mais complicado socialmente do que se imagina, pois por volta “desses” anos a cem anos atrás, começou a se formar no mundo o conceito de eugenia, que a simples modo de dizer, seria a eliminação de todos os indivíduos que tivessem qualquer alteração cromossômica que indicasse que teriam doenças e deficiências no futuro.
    Os seres humanos precisam ficar atentos.

  10. Jairo,
    Seu texto transpira verdade humana. Isso é ser humano. Quem tem sonhos de verdade e filhos de verdade deveria saber viver cada um com esta sabedoria.

  11. Jairo, obrigado!
    O sorriso do bebê down parece uma oração. Agraciou meu dia e digo mais… Vai escrever bem assim lá no blogfolha meu amigo!!! Seis horas da manhã e depois dessa leitura uma vontade de ser desigual neste mundo tão igual.
    Parabéns e obrigado novamente!

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