Re-post – O tempo não para
Há seis anos, publiquei no blog, que dava seus primeiros passos rumo à dominação do mundo, um texto que, para mim, é um dos mais importantes da história desse diário virtual.
O relato foi elaborado por Marli e Fábio Cassiano, mãe e filho que conviviam com enfermidades degenerativas e que contavam o tempo de uma maneira peculiar, bem distinta da maioria dos comedores de arroz com feijão.
Na semana passada, Fábio e a família perderam Marli, uma mulher que jamais vou esquecer o olhar, a sabedoria e a delicadeza. Sim, a doença chegou ao limite para ela, que morreu dormindo, talvez, sonhando com uma realidade mais inclusiva, que aceite mais bem as diferenças.
Agora, a tarefa de defender com tanta desenvoltura a vida humana diante de situações mais aparentemente extremas, fica a cargo do poeta Fábio.
Para os dois e para qualquer pessoa que se emocione com a força das incríveis histórias humanas, republico abaixo “O tempo não para”.
Em azul, estão os dizeres do poeta Fábio, em vermelho, da graciosa Marli… logo Marli… nome da minha amada mãe.
Tomem fôlego e boa viagem:
♥
Dezenove de abril de 2009 e acabo de fazer 20 anos. Olhando minhas fotos antigas, veio um filme na cabeça. Cada um dos dias da minha vida, considero uma vitória. O tempo passou rápido. Estou no terceiro ano da faculdade (Propaganda e Marketing), gosto de escrever e consegui publicar meu primeiro livro, juntando minhas poesias.
Há 20 anos nascia meu terceiro filho, Fábio. No instante do nascimento, um detalhe, uma demora para a primeira respiração e a recomendação dos médicos para uma atenção especial a partir dali, com o desenvolvimento do bebê.
Sempre curti música, dava aula de pintura, bancária,, pedi demissão e comecei minha carreira como corretora de imóveis. Trabalhava muito, adorava dirigir, dançar.
Ainda na infância, aproveitei cada momento brincando, andando, correndo de um lado para outro, fazendo bagunças, pulando, como toda criança. Aos três anos, a pré-escola.
Corretora, minha vida ficou bem agitada, correndo para lá e para cá levando os filhos na escola, ficando o dia todo no trabalho, mas aproveitando cada momento da infância deles. Jogávamos vídeo game, montávamos Lego, desenhávamos juntos. Cada um dos meus filhos com um estilo diferente.
Aos sete, a vida me reservou um imprevisto: passei a sentir dificuldades de movimento nas pernas e não conseguia mais andar, correr e subir escadas com facilidade.
Quedas se tornaram frequentes e era um esforço imenso me levantar do chão. Vivenciei o termo “cair e se levantar”. Em qualquer atividade estava sujeito a tropeçar ou cair – minha mãe, na maioria das vezes, me ajudava e incentivava a continuar caminhando, com confiança. (Aparte do tio, aqui, eu já não agüentei)
Como nem sempre ela estava por perto, tive que aprender a me virar, a encontrar força e ânimo para me recompor e seguir em frente. Na época, pude perceber o isolamento provocado pelo preconceito inconsciente das outras crianças e com três amigos, um deles cadeirante, segui até a oitava série.
Fábio fazia natação e era acompanhado por uma terapeuta ocupacional quando começamos a discutir se ele teria apenas uma disfunção cerebral que ocasionava as dificuldades motoras ou outra coisa que o estava deixando cada vez … mais fraco.
Começamos a investigar qual era minha doença e depois de alguns exames inconclusivos fizeram, com a equipe da doutora Mayana Zatz na USP, a pesquisa no DNA. O diagnóstico foi Distrofia Muscular de Duchenne (DMD), uma doença genética caracterizada pela degeneração progressiva do tecido muscular.
Lembro de estar na USP, dois meses depois do exame de DNA para ter o resultado oficial (apesar do meu coração já ter me dado a resposta) e enquanto esperava pela doutora vi muitos meninos já em estágio avançado da doença, com o corpo deformado pela escoliose e encurtamento dos músculos (a maioria deles, carentes, que usavam as instalações para fazer fisio e hidro).
Confesso que fiquei chocada. Estava ali esperando uma resposta que não queria ouvir. Não podia imaginar a existência de uma doença tão terrível e sem nenhuma perspectiva de tratamento. (A partir de agora, queridos leitores, respirem fundo e não teimem em evitar as reações naturais da emoção).
Um ano depois, o improvável aconteceu: comecei a perceber certas dificuldades em carregar peso e a digitar no computador…
Aos 38 anos, descobri que eu também tinha uma doença degenerativa, após muitos exames, uma hipótese seria a ELA (Esclerose Lateral Amiotrófica).
A partir daí a vida da minha família realmente mudou. Comecei a fazer terapia e uma busca desorientada para saber a razão de tudo. Para saber “por que eu?”. Em seguida, é claro, vieram todas as indicações de boa vontade de todos os conhecidos em nos levar para curas milagrosas, que obviamente não aconteciam.
Chega a hora em que você precisa assumir seu destino, encarar de frente e aí somente Deus pode entender sua dor e orientar seu caminho.
Aos 12, já era impossível me locomover sem ajuda e passei a usar cadeira de rodas. Foi um momento difícil me transformar em cadeirante, mas senti que as quedas não aconteceriam mais, além do incômodo de ser carregado. Passados dois anos, meus braços também ficaram comprometidos, não permitindo que eu me movimentasse sozinho na cadeira…
Quando Fábio começou a usar a cadeira de rodas, eu estava em plena busca interior. Os porquês começavam a ser respondidos por mim mesma. Apesar de imperceptível para as pessoas, meu corpo já estava totalmente diferente. Perdi oito quilos de massa muscular e já dirigia com dificuldade.
Foi quando comecei um tratamento com quimioterapia, indicado pelo chefe de neurologia do Hospital São Paulo e pelo que me disse, após algumas aplicações, eu já sentiria melhoras – tive até um breve momento de esperança. Oito meses depois, o resultado não aparecia. Enfim, dei adeus para o médico e nunca mais voltei.
Parei de dirigir (uma das coisas que mais senti em perder) e, em 2003, depois de muitos tombaços de cabeça e perna para cima, comecei, também a usar cadeira de rodas.
Em 2004, iniciei fisioterapia respiratória, para combater a diminuição da minha capacidade pulmonar. Fui à Campinas em busca de adaptações para segurar a postura da minha coluna e me sentar na posição correta. Aescoliose (é um desvio na coluna isso, eu também tenho, mas foi amenizado com uma cirurgia de colocação de platina) afeta terrivelmente os portadores de distrofia.
Adaptação! Palavra simples com significado complexo. Não é apenas o fato de adaptar-se à cadeira, mas o fato que a partir dali ela faz parte do seu corpo. Que você é deficiente, dependente até mesmo para tomar pequenas decisões. Quando se tem uma doença progressiva, a cada dia, aos poucos, você deixa de fazer o que até ontem conseguia. Vai perdendo sua própria identidade.
Fiquei dois anos sem ir a shoppings ou lugares públicos para não encontrar com pessoas conhecidas, ia apenas de casa para o trabalho. Sair junto com o Fábio então – dois cadeirantes!!! – foi mais difícil para mim do que para ele.
No trabalho, sentava numa cadeira normal e me disfarçava atrás da mesa. Com isso, muita gente não percebia que eu já tinha perdido até movimentos dos braços e mãos.
Desde pequeno sempre contei com a ajuda da minha família. Em cada aniversário, Natal e Páscoa, minha mãe escondia os presentes para que eu andasse pela casa procurando-os e eu adorava, ficava com os olhos brilhando de alegria. Confesso que era paparicado muitas vezes, talvez por ser o caçula. Acho que tentava compensar o fato de eu ficar mais em casa e meus irmãos saírem para atividades que não poderia participar.
Éramos unidos. Dávamos voltas no parquinho, tirávamos fotos e minha mãe demonstrava um imenso amor por mim. Em troca, eu fazia surpresas, entregando-lhe cartões feitos à mão, dizendo o que eu sentia ela.
De repente, percebi a dificuldade da minha mãe em se movimentar. Fiquei preocupado e ela continuava falando que estava tudo bem. Talvez para me proteger e eu entendia, mas sentia medo do que poderia lhe acontecer. Sabia que ela estava passando por problemas e queria ajudar, mas não podia fazer nada. Ao mesmo tempo, a gente continuava unidos.
Quando, enfim, ela se tornou cadeirante, passamos a ficar ainda mais próximos e podíamos entender as limitações um do outro. Com o tempo, ela foi se acostumando com a nova situação e como eu, a aceitar sem desistir. Sempre que preciso, ela me dá importantes conselhos e exemplos por meio de suas atitudes e conquistas.
Sou um grande fã da minha mãe, pois apesar de todos os problemas, ela sempre pensou positivo, lutou nos momentos mais difíceis compartilhando tudo comigo, me orientando a viver da melhor forma possível.
Passado o momento doloroso para meus filhos e meu marido, a gente procurou uma forma de continuar nossas vidas independentemente do que estava acontecendo. Eu e o Fábio passamos a conversar e nos preparar ao que vinha pela frente. Esse envolvimento ficou mais emocional, quase espiritual já que não podemos sequer nos abraçar.(bebe água, bebe água)
Sempre batemos longos papos e procuro responder com sinceridade tudo o que me pergunta. E ele sempre me fez perguntas difíceis de responder. Já adolescente e romântico, via que tinha um carinho muito especial por uma amiga e é claro que um dia ele me perguntou o que eu achava da possibilidade de falar para a garota que gostava dela, como ela encararia isso.
Pensei e repensei e lhe falei: “quer uma resposta sincera? Imagine o seu irmão, bonitão, chegando aqui em casa com uma namorada, cadeirante e com um problema progressivo. O que você sentiria com isso? Para nós não seria tão complicado – precisaria de um tempo para encarar. Agora imagine para uma família “normal” como a dela, qual seria a reação. Não é preconceito, é apenas o padrão que nos foi ensinado. Acho que você perderia sua amiga. Um dia, talvez daqui há uns anos, conheça alguém com um amor de alma que esteja a altura de receber seu amor incondicional”.
O bom é que o Fábio percebeu que pode e vai sentir isso por muitas pessoas e muitas vezes e o melhor é ir curtindo essas amizades e paixões de adolescência com naturalidade.
Aos fins de semana, acabamos por ficar juntos. Os irmãos saem e já passamos muito sufoco por isso – tipo o braço cai fora da cadeira e eu ajudo puxando o com os dentes.
Hoje, somos totalmente dependentes. Quando uso o computador, geralmente é o Fábio que está digitando. No trabalho, tenho um fone conectado e uma pessoa para me ajudar em tudo, dando aquela ajeitada nas pernas e braços, fazendo maquiagem antes das reuniões de venda, coisa que consigo fazer com tranqüilidade
O dinheiro das contas ainda vem com o trabalho na imobiliária (eu e meu filho mais velho). Ainda não posso parar de trabalhar, pois estou preparando o Caio, que só tem 23 anos, para tocar sozinho o escritório quando eu não puder mais.
No final do ano passado (2008), uma amiga decidiu nos presentear com novas adaptações e cadeiras, para melhorar nosso cotidiano. Foi um maravilhoso gesto da parte dela, uma benção de Deus. Para mim, fizeram importantes mudanças na cadeira; a principal foi um colete que envolve o meu tronco na frente e atrás, me segurando numa melhor postura, reduzindo a ação da escoliose e lordose da coluna, sem o qual não conseguiria nem sentar. Foi um upgrade total!
Hoje, quase 10 anos depois, fiz uma biópsia muscular a pedido de um médico e se definiu o meu diagnóstico em Atrofia Muscular Espinhal tipo IV (não muda muita coisa). Apenas fiquei esse tempo todo achando que tinha outra coisa, fiz até quimioterapia e foi indicada por um médico famoso. Como voltar atrás e brigar com ele? Para quê? Talvez tudo tenha um sentido – será que eu perdi esse tempo?
Às vezes, fico achando que não vou dar conta, que vou parar de trabalhar. Sempre que penso assim, o universo me responde com surpresas maravilhosas, como essa proporcionada por amigas – a edição das coletâneas de poesias do Fábio, transformando no livro “Amores em Alguém”, é para uma mãe ficar cheia de orgulho.
Queria passar para as pessoas que existem sempre duas escolhas e em cada uma delas um campo de possibilidades. E como é difícil correr na contramão e vencer todas as barreiras colocadas dia a dia na sua frente. Não somente físicas, mas de acessibilidade, confiança, pré-conceito ou de provar mais que qualquer um sua capacidade de fazer ou realizar a atividade pretendida.
Para isso, tive que aprender a me aceitar como estou, porque isso não muda o que eu sou, não tira minha força nem minha coragem. Escolhi viver!
Muito disso tirei das posturas do Fábio, que teve sua vida sempre torneada pelas dificuldades físicas, por deixar de fazer o que os meninos da sua idade faziam, jogar bola, ir para balada, enfim, tudo o que normalmente transformaria uma pessoa em pura tristeza ou revolta. Ao contrário, ele se tornou um jovem alegre, carinhoso, que ama sua vida como ninguém, que faz projetos, alheio aos prognósticos escritos pela medicina.
Como mulher, tive que aceitar as transformações do meu corpo, minhas perdas pessoais, coisas que curto ainda fazer (como nossas festas de aniversário que são sempre dançantes), abraços que deixei de dar, amigos que deixei de ver. Como mãe, sei que estamos vivendo uma pequena parte desse roteiro que Deus escreveu para nos transformar em seres humanos melhores. (Aqui, eu desabei de uma vez…abaixo, eles passam a escrever juntos…)
Sabemos que o tempo corre, que muita gente como nós espera aquele milagre, aquela cura, a célula-tronco, o transplante e só depois disso vai pensar em viver.
Sabemos quão maravilhoso seria tomar um comprimido e sair andando, mas a única certeza que temos é que se pararmos de sentir, de querer, de sonhar, projetar, escrever, a gente está simplesmente “gastando vida”. Tem gente que prefere ficar dormindo com um tremendo dia de sol…
Quando um médico me falou erroneamente, há 12 anos, que eu tinha ELA (Esclerose Lateral Amiotrófica) e parei o tratamento, ele não me deu mais de dois anos de vida. Continuo aqui na área. Os médicos do Fábio sempre determinaram que “daqui a cinco anos” (já faz quinze) vai aparecer uma cura, um tratamento, uma coisa qualquer. Já pensou se tivéssemos aceitado o tempo que nos deram?
Ninguém é dono do tempo. Quem espera a perfeição para poder se realizar já está perdendo tempo. Ele simplesmente passa por nós, não temos controle, o relógio é o próprio universo, o próprio Deus. É o tempo que existe para nós… O tempo que nunca para.