A bicicleta do André

Jairo Marques
André, todo felicidade, montado em sua nova bicicleta azul. Ao fundo, sua mãe, Lina
André, todo felicidade, montado em sua nova bicicleta azul. Ao fundo, sua mãe, Lina

André é um moleque daqueles em que metade da humanidade bate o olho e pensa: “Meu Deus, o que será o fim disso? Como uma criança pode ter uma realidade torta dessas?”.

Bem estragadinho em decorrência de um grau severo de paralisa cerebral, meu pequeno amigo baba um bocado pelo canto da boca, tem (mau) domínio sobre poucos movimentos do corpo, não fala nada muito compreensível e desafia o tempo todo os que veem no sentido da vida tudo o que ele não tem.

Mas o Andrezinho, subvertendo qualquer lógica idiota de um adulto que enche o bucho de arroz com feijão e depois vai arrotar “verdades” sobre a vida alheia, tem sonhos, faz projetos, solta sorrisos intensos e emite pelos olhos chamas de sentimentos.

A última do menino quase me desmancha em amor e em matutar a respeito da insignificância do meu carrão novo. Ele queria, de qualquer maneira, ter uma bicicleta. E mais: queria poder sair da cadeira de rodas -onde para ter prumo no corpo fica todo afivelado por tiras- e pedalar uma magrela só sua, livre à sua maneira.

Sem querer aplicar velhos conceitos mutiladores de asas no filho, Lina, a mãe, respirou fundo e sorveu do ar, como costuma fazer nos momentos difíceis de compreensão de seu rebento, os prováveis pensamentos que ele tinha por meio daquele pedido aparentemente exótico para uma criança em sua condição.

André queria sentir aquela emoção transloucada do garoto que passa descabelado no calçadão da praia meio que pedalando, meio que falando internamente: “ai que gostoso, ai que gostoso”. André queria o direito de imaginar e, quem sabe, praticar brincadeiras de cortar o vento. André queria uma infância igual, quiça com pereba no joelho e frieira nos pés por conduzir sua bicicleta na chuva.

Toca a Lina escrever e pedir ajuda pra uma dessas trupes de gente que ainda existem no mundo dedicadas a fazer a diferença na vida de crianças que convivem com diferenças, sejam elas em decorrência de uma saúde debilitada, de deficiências diversas, abandono, violência e outros percalços de uma existência tranquila.

“Seu Jairim, arrumamos uma bicicleta toda trabalhada na acessibilidade e vamos presentear seu amigo André, de surpresa. Diz a mãe, Lina, que se você estiver presente na entrega, a emoção do menino será ainda maior porque ele te gosta muito.”

Diante da mensagem, segurei firme a rajada de choro, mas escapou uma goteirinha no canto do olho esquerdo. Ao André eu só havia dado, até então, abraços de amigo e palavras de possibilidades diante todos os seus perrengues para conseguir uma escola, conseguir ir, conseguir vir e permanecer onde bem entendesse.

Em um parque, de surpresa, entregou-se a bicicleta do André em meio às pessoas de que ele tanto gostava. Em princípio, ele ficou desnorteado com aquele mar de aceitação, de novidades e de realizações. Chorou confuso quando colocado na magrela.

Momentos depois, meu amigo ajeitou-se e, com a força possível para suas pernas fininhas e espasmódicas, pedalou e abriu-se numa risada de milionários. Lina teve o Dia das Mães adiantado. André teve aberto um futuro de novas esperanças.

Comentários

  1. Lindo texto, Jairo. O Andrezinho andar muito na bicicleta dele, ele irá ter um desenvolvimento legal!
    Você também foi peça fundamental na decisão do André, penso eu, contando seus perrengues. Ele é muito inteligente, decidido e vivaz e, pelo que eu vi nos encontros do ACV, ele consegue mesmo aquilo que quer. Quanto a Lina ficar com o coração na mão, quando o filho passou para a bike, lembrei da minha mãe. Ela também ficou muitas vezes com o coração na mão, mas deixou as coisas correrem. Deixou eu fazer tudo que eu queria e podia, mesmo que eu não acreditasse muito em mim, ela me incentivava e me puxava pra frente.
    Torço para o Andrezinho ficar cada vez melhor e que a alegria dele dure muitoooooo.
    Bjs. em você e na família.

  2. Grande amigo da turma “Contadores de História) da UFMS/98, prazer revê-lo por aqui. Precisamos reunir a turma caca. Quando aparecer por campo Grande, dê um alo, vamos nos rever, a turma esta toda espalhada por ai. Sucesso grande guerreiro.

    Moura
    (pejota51@hotmail.com)

  3. Quando menina, queria uma bicicleta também, mas em 19 e guaraná com rolha acessibilidade era palavra estrangeira. Mas meus pais compraram um triciclo com banquinho atrás para o carona ( no caso eu). Meus irmãos não gostavam nadinha de ter que sair pedalando triciclo com uma menina atrás, mas iam assim mesmo. Para mim foi uma das melhores lembranças da minha infância. Imagino a alegria do André !!!!

  4. Mil obrigadas ao André, D. Lina. Jairo!!

    Vocês inauguraram o Dia das Mães, prá mim, no mais alto astral!

    Viva cada um e todos vocês! E viva também a mega bike!

  5. Parabéns Jairo Marques pelo jornalismo humanitário, solidário e consciente! Você narrou um episódio iluminado na vida de meu netinho, o André. Ele tem sido sempre muito amado e inspirador de nossas boas atitudes nesta existência. Obrigada!

  6. Que maravilha, Jairo, você sempre nos ajuda a tornar nossos dias mais ou menos em lindas tardes ensolaradas. Grande abraço, amigo.

  7. Muito legal o texto. Bem que a sociedade brasileira poderia tratar melhor seus deficientes físicos. Na maioria das vezes eles sequer têm acesso ao sistema de transporte.

    1. Não tem mesmo. Meu filho tá sem transporte escolar e com a escola comprometida esse semestre por isso. Nem pagando consigo. E a secretaria municipal do deficiente nem me responde mais aos pedidos de ajuda nesse sentido.

      1. Lina, a questão do transporte para atender ao direito constitucional à educação me parece tão simploriamente básica, que me ponho a questionar se o trabalho da secretaria do deficiente não estaria a merecer uma reavaliação ou mesmo correção de rumo.

  8. E eu que acho que tenho problemas. Deus o abençoe Andre e também todos aqueles que ajudaram a tornar o seu sonho uma realidade.

  9. E pensar que nossa confraria foi ‘descoberta’ por acaso, no vácuo da coincidência do passeio da Lina com o Andrezinho no Shopping Paulista, bem na data de um de nossos encontros, lembra? De repente a Lina viu aquele monte de estropiados juntos festejando a vida, bateu sentimento, tomou coragem e se juntou à turma. Foi demais, tanto que no ano seguinte lá estavam eles, no mesmo shopping, participando conosco de mais uma comemoração de aniversário do ACV. Devidamente engajados. Teve até dupla de violinos, né? Desafinamos tudo, mas ninguém notou. Andrezinho é uma dessas pessoas que não passam desapercebidos, nem querendo. Seu sorriso é sintoma de felicidade e segurança, talvez por saber que pode sempre contar com mamãe Lina nas horas dos perrengues por que passam todas as crianças. Será que ele deixa a gente dar um cavalo de pau na bike nova?

  10. O André é um menino inteligente, feliz, bem humorado, com muito brilho e esperança nos olhos e muita vontade de realizar…. ele merece!!!!
    Parabéns Andrezão, a Lina sua mãe vitoriosa e lutadora, e parabéns pela belíssima matéria Jairo Marques!

  11. Eu estava lá… foi sensacional… quem me dera saber falar com os olhos como faz meu amigo André!!!Mesmo sem palavras, nosso garoto querido disse tudo: seu sorriso, seu choro, seu sim e seu não (gesticulados) valeram por qualquer vocabulário… e fez valer o lugar de todos nós nesta vida misteriosamente maravilhosa que recebemos para desbravar….bjs a todos

    1. Tatiana, nunca vou conseguir agradecer o suficiente! beijos mil pra você e suas colegas tão doces!

  12. Obrigada por descrever, tão lindamente, os sentimentos, sonhos e desejos do André, meu violinista mais lindo!

  13. Jairo muito aspirado e emocionante texto, e eu que fico só metendo o pau em política resolvi dar um passeio no Folha e encontrei uma felicidade completa e até alivio para o meu cérebro, consegui basicamente viajar numa felicidade de uma leitura que não via a anos, parabéns, felicidades André, sei que dará mais surpresa pra nós.

    1. Torço para que mais gente mude o foco, por alguns momentos, para que outras histórias e outros debates também ganhem valor, José… Um abraço

  14. Texto maravilhoso Jairo, durante um tempo da minha vida dedicava algumas horas do final de semana a visitar uma instituição de crianças com paralisia cerebral, lá conheci as pessoas mais fantásticas e sonhadoras que já pude conviver. Parabéns pelo texto.

  15. Que bacana Jairo. São coisas assim que ainda nos mantem com o moral alto. Por que de resto nesse país só vejo malfeitos, maudades e mentiras…. tudo com eme….
    abração.

  16. Lindo! São crianças, especiais (no sentindo mais amplo da palavra) como o André, que nos dão algum sentido na vida! Percalços todos temos, cabe a cada um de nós (da sua propria maneira) superá-los a agradecermos diariamente o dom da vida que nos foi concedido! Parabéns a iniciativa! Só posso desejar que se prolifere Brasil a fora… E muitos km’s de alegrias ao jovem André!

  17. Que lindo e emocionante, Jairo! Lina, este momento é único para nós e para eles, que essas novas rodas levem nosso violonista cada vez mais longe em suas conquistas de libertação de paradigmas.
    Lembro-me do dia em que a Júlia também pediu uma bicicleta no dia das crianças e depois de muito conversar e procurar encontrei no Sr. Sergio, da Dream Bike (ele também deficiente), o ensinamento que precisava e a tão almejada bicicleta. O que me fez efetivar a compra foi o comentário dela ao experimentar uma pela loja: – “Mãe, sempre sonhei em sentir este ventinho no rosto e os cabelos balançando.” Pronto, tão simples e tão especial, assim como o sorriso do André em meio as lágrimas. Parabéns Lina, pelo seu presente de dia das mães, tão especial quanto você.

    1. A dreambike foi show! Atendimento ótimo, pessoal atencioso e delicado. O André amou o sr. Sérgio. Colou nele! Fez até uma foto junto com ele! Eles ajudam um bocado nesse sonho da bicicleta dessas crianças!

  18. Tio eu aqui só lendo seu texto maravilhoso já chorei, imagino vc ao vivo assistindo a entrega da magrela. Demais ! Bjs para vc, Thaís e Elis

    1. Foi gostoso demais, Fabiana.. imagina se todos do “núcleo duro” do blog estivessem lá?!?!

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