Nosso estranho amor

Folha

—Que maravilha você ter vindo acompanhar sua irmãzinha hoje. Vocês são superparecidos, sabia? E como ela é cuidadosa contigo! Dá para ver na cara dela o carinho que tem por você. Coisa mais linda, viu. Fico até emocionada…

Olho ao redor em busca de minha irmã, embora eu estivesse certo de que a cabeleireira falava, na realidade, de minha mulher, que se divertia, certamente, com alguma outra conversa de doido com a manicure em um canto do salão.

Em situações assim, é preciso insistir um pouco para convencer o interlocutor de que cadeirantes (também os cegos, os surdos, os downs) são uns danados capazes de, sem literalmente correr atrás, trazer amores para o colinho e romances para suas vidas.

—Nossa, é sua mulher? E está grávida, né? Benza Deus, que glória… Nunca vi um casal tão parecido assim de rosto. Você tem sorte, viu, meu filho? Uma mulher bonita dessas não é para qualquer um…

Em outras oportunidades, ela já foi dada como minha enfermeira, minha babá, minha ama de leite, minha assistente, minha auxiliar de pagamento de promessas, minha concubina e como amiga inseparável que até dorme na mesma cama que eu.

“Difinitivamente”, como diria minha tia Filinha, não posso me ofender nem querer arrancar os cabelos com a pinça diante dessas comuns situações de confusão social diante do desconhecido. A melhor maneira de resolver impressões equivocadas como essas é uma breve beijoca na boca e um sorriso divertido para o público ávido para saber que diabos aquela mulher faz com o pobre do aleijado.

Também contribui não entender as relações humanas como padrões de combinação de acordo com características físicas ou de comportamento. A graça de bons romances está em uma eterna descoberta e redescoberta do outro, em suas possibilidades de criar alegria para as chatices do dia a dia e no prazer de compartilhar o silêncio, a algazarra e o amanhã.

Mas há sentido nas interpretações equivocadas, apressadas. A nossa lógica de amar guarda peculiaridades desconcertantes. Para ser compreendida, é necessário edificar no pensamento escoadouros para velhas maneiras de embalar a paixão.

Em vez de eu abrir a porta da charanga, é ela quem me espera entrar no carro para depois ainda guardar a cadeira no porta-malas. Em vez de trocar a lâmpada, eu seguro a escada. Em vez de protegê-la da chuva, nós nos molhamos juntos. Em vez de carregar o peso das compras, procuro dar a ela a leveza de um sentimento de beija-flores.

Não nos escoramos em padrões de “papel do homem” e “papel da mulher”. Rabiscamos um novo enredo em que cabe a cada um a melhor maneira de proporcionar felicidade e construir um futuro de velhos fofos, parceiros e solidários um ao outro, da maneira que melhor nos for possível.

Nestes tempos de novas formações familiares, de conquistas de gêneros, de avanços na maneira de entender a diversidade, é fundamental para a cidadania germinar pensamentos que libertem a mentalidade de amarras construídas com ignorância, com preconceito e com afastamento de causa.

Comentários

  1. Já passei cada uma com meu marido “muletante malacabado “, a última foi no ônibus, como ele tem bilhete especial, eu passei na catraca e ele ficou na frente, simplesmente a cobradora me disse que eu não podia passar tinha que ficar ao lado dele para protege-lo. Então respondi a ela que é mais fácil ele me proteger do que eu a ele. Sem contar as vezes que passei por mãe dele, essa entao é de arrasar.

  2. Oie! Já fui uma comentarista mais assídua aqui, e embora não tenha mais marcado presença, continuo acompanhando seu trabalho no blog, e vejo que a cada dia fica melhor! Esse texto, então? Simplesmente perfeito, Jairo! Parabéns!!! Sucesso sempre!!!

  3. É o que acontece com os meus amigos também. Os estigmas são muito fortes ainda.
    Mudando de assunto e indo para o texto anterior, eu sei que o termo que você usa para os defs intelectuais é teu modo de se expressar, mas o que eu queria era passar que os downs, se devidamente estimulados desde bebes, podem chegar à uma universidade, como os pcs. Bjs.

  4. Caro Jairo, adorei o seu texto.

    Confesso que ri no início.

    Os “pre – conceitos” são um problema.

    Que bom que você enfrenta situações como essas com bom humor!

    Um forte e fraternal abraço!

  5. Jairão, isso é que é matar um leão por dia. O resto é bobagem. Difícil as pessoas aceitarem a felicidade alheia e nisso você é profissão… Você estampa felicidade, meu amigo. Grande beijo para os 3.

  6. Obrigada por dividir sua história que nada mais é que uma história de amor. E como o ideal de amor romântico resolve enfrentar qualquer parada!

  7. Jairo, maravilhoso seu artigo! Me indentifiquei muito com ele 🙂 Esse relato mostra uma forma encantadora de encarar os relaciomentos humanos, em geral, e os que não se encaixam nos obsoletos padrões sociais.
    Parabéns e sucesso!

  8. Adorei Jairo! Aqui em casa a situação é um pouco mais caótica, eu e o Jota unimos nossas escleroses e o acordo é: o que tá menos pior, ajuda o outro. E assim, um dia eu empurro a cadeira dele, no outro ele me segura pela mão.
    O mais engraçado é quando alguém pergunta: mas e o sexo?
    Eu sempre respondo: nem adianta propôr… não somos convencionais mas não topamos ménage à trois…
    hehehehehe
    Bjs

  9. Putz, Jairo! Que texto lindo e ainda por cima cheio de amor.
    Tãooo bom fugir do padrão, se arriscar, romances novos, sensações inéditas, muitas, muitas. Quantas vezes ouvi algo parecido com o que você relatou! Ah, mais dá vontade de arrancar os cabelos com a pinça sim, diante dessa situação! (risos)
    E como sempre você arrasa com as palavras!

    Beijo! 😀

  10. Como.sempre show de palavras reais e de sen sentimentos verdadeiros repletos de amor, companheirismo e felicidade. Bjos para vocês dois

  11. Ai que saudade desse cafofo… Perdao pela ausencia mas a volta ao trabalho tem me deixado distante mas o tio sabe q mora no meu coraçao ne? Amei o relato… Ja passei por cada uma vom o maridinho tbm… Sempre tem um perguntando sobre o meu pai.

    1. kkkkkkkkkkkkkkkkkk… sério, Maysoka???? Leitores cativos nunca ficam ausentes… eles apenas dão uns pausas para voltar com mais força!

  12. Lindo e verdadeiro, tudo o que “foge do padrão” causa estranheza mesmo. E o divertido é ver o olhar incrédulo das pessoas, imagino o que vocês passam, também foi arranjar uma mulher linda que chama a atenção, agora aguente rsss. Minha nova família também atrai olhares, uma ruiva, um negão de quase 2 metros e uma cadeirante, 3 “pontos de referência” juntos, a gente dá muita risada rssss. Beijos para vocês, saudades

  13. KKKKKKKKKKKKKKKKK! Ao mesmo tempo que morri de rir, fica uma ponta de frustração por saber que em pleno século XXI as pessoas parecem não mudar seus pensamentos. Parabéns querido tio por mais um texto que diz tudo!!!!!!!! Acho muito engraçado que as pessoas normalmente dizem que os deficientes são parecidos sempre com alguém. Que mania que tem de querer igualar. Isto quando não falam assim: tem um amigo seu ali na frente. Só porque é cego necessariamente aquela pessoa precisa ser meu amigo, kkkkkkkk. Já pensou se o cabra aprontou feio e ainda foi titulado como amigo? Também não aguento quando me falam assim: acho tão bonitinho vocês dois. Bonitinho é? Então tome ele e aguente suas chatices, kkkkkkkkkkkkkk. Será que pensam que tudo é flores entre estes casais tão diferentes? Arrã, flores, kkkkkkkk

    1. Ju, essa do “amigo ali na frente” é fantástica ahahahahahha… é isso mesmo… Mas vamos lá, construindo novas versões para padrões antigos… Beijos.. e é ótimo te ler por aqui de novo!

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