Desculpas, picolés e camisetas

Jairo Marques

A cena é velha conhecida destes tempos intragáveis de intolerância: um casal gay se beija em público, como em qualquer momento frugal de relacionamentos, e é hostilizado pelo romance. Desta vez, foi em uma loja de picolés. Os rapazes, entre lambidas e carícias, foram abordados por um funcionário “reaça” dizendo que aquilo não era de Deus e que os dois deveriam sair do local.

Climão, chateação, humilhação, noites maldormidas, uma sensação de inferioridade, uma frustração por não ter a vida e a diversidade respeitadas se misturam e fazem reprimir um pouco mais a força de manifestar a delícia de ser o que é.

Mas aí, finalmente, uma atitude nova surge no horizonte. Uma atitude que expõe fraquezas legítimas quando se trata de lidar com o “serumano”, uma atitude que emociona e promove reflexão.

Os donos do local vêm a público, em redes sociais, fazer bem mais do que passar um pano na sujeira moral criada com a postura desastrosa do funcionário. Assumem o erro sem a chatice de se preocupar em sair com a imagem de bom-moço arranhada, como se o líder, o chefe ou o diretor nunca errassem

O trecho mais comovente da declaração diz o seguinte: “Trabalhamos com pessoas. Não só com picolés! Devemos saber da conduta das pessoas que empregamos em nosso estabelecimento. Devemos orientar e situar nossos funcionários no século 21. Devemos investir em debate e treinamento pessoal para que essa situação nunca chegue a existir. Devemos focar nossa comunicação na tolerância e falar abertamente de amor ao próximo e à humanidade. Nós nos gabamos de não termos robôs em nosso trabalho 100% artesanal. Mas não podemos nos orgulhar disso quando casos desse tipo acontecem”.

Sinto muita falta de mais desculpas de picolés no mundo. Aos algozes de hoje não bastam mais os triunfos a qualquer custo, é preciso um tom blasé diante da atrocidade. É preciso contratar um bom advogado para achar uma justificativa legal para algo que causa vergonha à própria mãe.

Quando o apresentador Luciano Huck quis ganhar dinheiro com uma camiseta infantil com a inscrição “Vem ni mim que eu tô facin”, também houve um desagravo, mas é importante notar a diferença do tom, a mensagem passada ao público.

Disse ele, em sua página no Facebook: “Acho que errei por não ter criado mais mecanismos para zelar pelos processos e evitar que falhas desse tipo pudessem acontecer. Poderia ficar aqui argumentando sobre o trabalho que tento fazer para fortalecer os valores em que acredito e que nada tem a ver com a mensagem equivocada que a tal falha gerou, mas prefiro pedir humildemente desculpas a quem se sentiu ofendido pelo ocorrido”.

Nada sobre a necessidade de fortalecer e rever a segurança da infância, nada sobre a perversa influência de hábitos idiotas de adultos no cotidiano da molecada, nenhuma palavra a respeito dos milhares de meninos e meninas que, de fato, tornam-se “facinhos” para pedófilos.

Mas é bom saber que existe uma contramão à mediocridade das desculpas esfarrapadas e que há quem pense no erro como oportunidade real de evoluir uma postura, um pensamento. Ganha quem luta por novas maneiras de ver os velhos caminhos.

Comentários

  1. parabéns, temos que trata o humano como eu me trato e me olho no espelho, todos os dias, iguais, para iguais, otima colocação, parabéns

  2. Concordo com o Rogério em gênero, número e grau. E acrescento: enquanto não houver respeito por todos os seres “incluídos pela exclusão”, não haverá a tão sonhada “inclusão”, nem dos defs e nem de ninguém, acredito eu. Bjs.

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