Porta-padrão

Folha

Eu já estava vendo estrelas naquele momento de tanta vontade de aliviar minhas represas íntimas, cujo volume estava totalmente vivo. Pudera, havia sido uma tarde de suco de melancia, cervejinha, chope preto e água para o calorão, tudo devidamente pressurizado com as chacoalhadas de uma marchinha ou outra de Carnaval.

O bar não tinha banheiro que me coubesse com a cadeira de rodas. O jeito era pegar firme na mão de nossa senhora da bicicletinha até a hora derradeira do encontro com uma casinha mais larga e que me abrigasse juntamente com minhas rodas.

Na perspectiva de quem não é cadeirante, toda porta de mictório é grande o suficiente para passar uma boiada, então, quando se descobre que o “serumano” aleijado precisa se aliviar, rapidamente o fato ganha destaque e não faltam opiniões seguras de lugares onde eu poderia fazer o meu xixi.

“Ah, ali na casa do Zezinho das Couves cabe. É ‘di certeza’. O banheiro é grande. A porta é padrão.”

Mesmo não sabendo que raios significa “porta-padrão”, não estava em posição de ficar contestando nada, embora, no meu íntimo, algo me dizia que seria roubada.

Subo na Kombi, cato a mulher, desmonto a cadeira, jogo a cadeira no porta-malas e deito o cabelo para a casa do Zezinho, repleta de foliões ávidos para botar, igual a mim, as águas para rolar.

Alguém vai na frente com uma sirene natural ligada para que eu tenha prioridade total no uso do banheiro. Era questão de dignidade para a minha fantasia de palhaço, já surrada e meio rasgada nas avenidas sem acesso desta vida.

Chego, monto a cadeira, dou mais uma respirada em busca de espaço na bexiga e voluntários vão abrindo alas para que eu adentre o mais rápido possível ao prometido paraíso de minha libertação urinária.

Não preciso me aproximar muito para já ir desmontando a esperança de fim do arrocho. A porta-padrão era estreitíssima e não havia chance de eu conseguir entrar ali. Naquele momento a torcida pelo “xixi do Jairão” já era grande e minha dignidade desaparecia em uma braguilha semiaberta.

Ninguém melhor do que o próprio cadeirante sabe onde cabe ou não cabe, que vão é capaz de passar ou não passar. Porém convencer os outros disso é custoso e até cômico.

“Empurra com mais força, que passa pela porta!”, gritava um. “Com jeitinho, vai”, berrava o outro. Desisti. Invoquei meu monge interno de enfrentamento do mundo sem acessibilidade e voltei para a charanga.

Naquele momento, umas 30 pessoas já sabiam da minha angústia mictória e cercavam o carro, no meio da rua, dando soluções mirabolantes. Eu já não tinha direito a decidir sozinho o destino da minha cerveja.

“Lá na casa do Jeter vai dar. Lá é porta-padrão. Certeza que dá, não é, Jeter?”

Jeter confirma, cabreiro, mas consulta a mulher: “Bem, lá em casa a porta do banheiro é padrão, não é?”. A mulher, por sua vez, pergunta pro filho, que joga a bola para a irmã.

Arranquei com o carro, mas, antes disso, uma boa alma joga pela janela uma porção de copos descartáveis. O alívio é por ali mesmo, descartando tudo em um buraco de esgoto. No Brasil, banheiro acessível ainda é copinho vagabundo de plástico. Ano que vem, tem mais Carnaval.

Comentários

  1. Quando decidimos reformar os banheiros de casa, a ideia original era substituir a porta por algo que fosse além dos 60cm. Mandei um email para o Zufelato, para a Tabata e parece que pra você também, perguntando qual era a largura mínima para poder recebe-los aqui sem perrengues. Ocorre que o gênio que projetou o apartamento cismou de botar uma coluna de concreto justamente onde seria a área de alargamento do nicho. Plano b: porta corrediça. Também não deu, porque não havia espaço para a porta corrediça ‘correr’ kkk, com o perdão do ridículo da coisa. Os banheiros ficaram lindos, mas para Eliana e eu sobrou um gostinho de frustração.

    1. Negão, esse problema da coluna estrutural é comum. Qse tive um perrengue sério com uma construtora por causa disso. Qdo eu for a sua casa, aceito que vc me dê um colinho, tá? ahahhahaha.. abrassss

  2. Que sufoco que você passou, só porque não tinha um banheiro com uma porta larga o suficiente! As portas tinham que ter uma medida certa para todos os lugares, ou seja, 0,80m que é a medida padrão das normas 9050 da ABNT. Pena que nem todos os arquitetos e engenheiros tenham essa consciência da largura das portas e outras coisas de acesso ambiental como rampas, mobiliário, etc. Bjs.

  3. Porta padrão não existe, as portas de banheiro costumavam ter 0,60m (estreitíssima para uma PNE), hoje tem cerca de 0,70m …. a largura da porta para PNE é de 90 centímetros, no mínimo.

  4. Jairo, Você tocou em um assunto que faz parte das nossas rotinas, mas que engenheiros, arquitetos e seres “pensantes”, ou pelo menos que deveriam ser pensantes, não pensam. Não lembram…:(
    Todo local que se preza deveria ter portas que passassem cadeiras de rodas, é o mínimo. Quando minha querida mãezinha foi internada, sofreu esse transtorno, pasmem, dentro de um HOSPITAL!!! As cadeiras de rodas e banho não passavam nas portas, te juro!! 🙁 🙁 Era um absurdo, mas a pura realidade! Tinhamos que aguardar um tempão, por uma única “cadeirinha”, na qual mal cabia minha mãezinha, isso por horas, até que ela desocupasse…Já que aquela ala toda do hospital se utilizava dela!! Muitas vezes minha mãe, apertada tadinha…Eu tinha vontade de quebrar as paredes, para que a cadeira entrasse no banheiro!! Muito difícil isso!!

    1. Nara, acredita que, nesta semana, fui a uma clínica com portas estreitas? Vai ao encontro do que vc falou… é um absurdo… tem que mudar!!! bjoss

  5. caramba eu aqui aflita, lendo e torcendo para essa mijada acontecer num lugar decente…enfim foi onde deu…até que entendam o que é banheiro acessível para cadeirantes… solução até lá fraldas descartáveis…

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