A vida das borboletas
Nunca tinha atentado para o fato de que perder a memória representa perder a própria história, perder momentos de prazer aos quais se socorre no desassossego. É como não ter o ontem para fortalecer o hoje, não ter a experiência para errar menos ou avançar mais.
Foi esse o ponto que me ganhou e me comoveu em “Para Sempre Alice”, com estreia prevista para as próximas semanas, no Brasil, e que colocou a atriz Julianne Moore na lista de concorrentes ao Oscar de melhor atriz neste ano.
O drama da película se torna ainda mais agudo porque sua personagem principal, Alice, aos 50 anos, descobre que tem alzheimer, em franca atividade profissional e muito jovem para os padrões conhecidos da aterradora doença, que avança arrastando estruturas familiares e convicções de vida.
Na minha roda de amigos, Tabata sempre tinha uma história hilária para contar a respeito dos esquecimentos da mãe, supernova e ativa, mas com a “cabeça na Lua”. Ora ela saía de casa e deixava a panela de feijão no fogo, que virava carvão, ora ela trancava o povo todo por horas na sala ao ir trabalhar e levar as chaves.
Mas houve um dia em que a mãe perdeu a orientação na rua. Não reconhecia as redondezas, os restaurantes, os cruzamentos. Não conseguia teclar os números dos telefones das filhas, não sabia o que fazer de si mesma. Pouco tempo depois, o diagnóstico de alzheimer, mesmo a mãe não tendo nem a idade convencional para ser considerada idosa.
Ter a consciência de que o cérebro está apagando, aos poucos, as lembranças de menino, os conhecimentos da faculdade, os beijos tórridos, os contornos dos rostos daqueles que compõem os seus conceitos maiores de felicidade desequilibra qualquer projeção de futuro.
Tão grave quanto a devastação causada pela doença é a ausência de maturidade e de espaço social para compreender e tomar medidas de proteção, apoio e convivência com as vítimas, até pouco tempo tidas como caducas, lunáticas.
O terror de famílias que possuem “esquecidos” em suas órbitas é que, em algum momento, seus entes se tornem indigentes de grandes cidades ou tidos como anedóticos diante de suas ausências legítimas de referências concretas de si mesmos.
Some-se a isso a angústia de tentar se preparar para os impactos do dia a dia, que parecem inimagináveis: esquecer de se alimentar, esquecer-se dos pequenos desassistidos, esquecer-se do que era importante não se esquecer.
Quando o alzheimer atinge pessoas em franca atividade intelectual, agrega-se ao rol de desafios o de ver esvair do nada as construções complexas da matemática ou o acervo precioso de Neruda. Fica apenas o homem, que rapidamente se desfaz como papel em chamas de seu diário vital.
“Para Sempre Alice” reforça o conceito com que invariavelmente se tromba na existência, mas que pouquíssimas vezes consegue causar a transformação que deveria: o de que a vida das borboletas é exemplar.
Enquanto habitam a terra, os bichos multicores percorrem rapidamente belezas naturais, encantam olhares, viram inspirações de amores, são alvos de caça, germinam flores e deixam rastros de renovação no Universo. Contudo, borboletas perdem suas histórias no relance de se encantarem consigo mesmas.
Texto inteligente para um assunto delicado, parabéns.
Obrigado, Toni… abraço
Olá Jairo,
Já ouvi uma vez que o Alzheimer é uma doença que acomete a família. As mente vai retrocedendo, primeiro levando a memória recente, depois a mais antiga, e com isso vão se perdendo também as conexões sociais, até o ponto em que o doente mais se comporta como um bebê (vovô, no estágio mais avançado, usava fraldas, comia papinha e ficava dando gritinhos quando as pessoas na sala conversavam entre si sem lhe dar atenção – e ainda usava fraldas!). Nesse estágio quem sofre mais são aqueles que vão sendo esquecidos, como se a nossa própria história fosse sendo apagada. Para o doente, a falta de memória muitas vezes é um alento, pois muitos acabam sendo abandonados por familiares que não conseguem dar conta do recado.
Pensar, e cuidar, do vovô, como cuidamos de um bebê , conferiu de certa forma, leveza a nossa relação.
Adoro o Blog, beijos!
Belíssima reflexão, Ana!
Fiquei encantada.
Estava sem o cartucho preto, mas fui, correndo, comprá-lo.
Tenho uma tia (96 anos) com a moléstia. Então, desejo muito levar uma cópia para o filho que a assiste. Não me diga que a cópia é inviável. Ele não aprendeu computação.
Adorei conhecer vc e este texto poético!
Mas será uma horna ser lido, no papel, por sua tia! 😉
Jairo, meu comentário não é exatamente sobre o texto, mas sim sobre o “conjunto da obra”.
Descobri seu site por acaso e, desde então, tenho lido os textos frequentemente.
Parabéns por seu trabalho. Acho que já é lugar comum aqui, mas a abordagem que você faz dos temas é diferente e precisa, sem melindres, sem fantasias, sem vitimização e sem viés lunático.
Isso tudo, hoje em dia, já é muito.
Muito obrigado, Rafael! Seu apoio me é fundamental!
Eu li esse livro há uns 5 anos…é bem triste 🙁
Triste isso, Jairo 🙁 !!Muito!!! Não se lembrar da própria história…! Mas é a realidade do momento, cada vez mais presente, infelizmente. 🙁
Cada vez mais….
Lindo texto Jairo. Compartilhei com os amigos do G+.
Abraços
Belo, triste e poético.
Obrigado, Patricia
Excelente texto. Só sugiro escrever Alzheimer com “A” maiúsculo, pois o nome se refere ao psiquiatra alemão Alois Alzheimer, que primeiro descreveu a doença em 1906.
Oi, Guilherme, obrigado. Pelo padrão da Folha, só colocamos em maiúsculo quando usamos doença de Alzheimer. Um abraço