Eles juram que enxergam
Já me acostumei com as trombadas do Felipe. No começo, eu me assustava a cada vez que ele, do nada, esbarrava em mim aqui pelos corredores do jornal. “Opa, é o Jairo, né? Desculpa!”.
Os nossos encontrões ocorrem porque, sentado na cadeira, fico fora do campo de visão mais focado do meu companheiro de trabalho, que tem uma deficiência quase ignorada pela maioria dos comedores de arroz com feijão: a baixa visão.
Os que “juram que enxergam”, como costumo azucrinar os amigos de bengala, não podem ser considerados cegos porque conseguem, em uma medida bem restrita, ter percepção de luz.
Em geral, mesmo com óculos e cirurgias reparadoras, não reconhecem fisionomias com facilidade nem leem itinerários de ônibus. Alguns veem apenas vultos, outros decifram letras com lupas potentes ou programas de computador de ampliação. Todos tocam a vida numa boa se houver compreensão de suas demandas e necessidades pontuais.
Aí é que o bicho pega. Normalmente, por falta de informação e por razões culturais, coloca-se no mesmo balaio o povão que nada vê e aqueles que veem um bocadinho. O problema não reside em apenas confundir dois mal-acabados, mas em dispensar a eles o mesmo tratamento.
Sabe aquele sujeito que demora horas na fila diante das cumbucas do quilão da esquina e logo alguém menos paciente solta um: “Escolhe logo essa comida, pô! Parece que é cego”. Pois é, ele pode ter baixa visão e precisar de mais tempo para a tomada de decisões visuais simples, como entender que batata não é mandioca.
Ou, de repente, você, como bom cidadão, vasculha os lugares reservados às pessoas com deficiência na Kombi e percebe que uma mocinha toda trabalhada na manteiga de Karité está com o rosto pregado nas páginas de “50 Tons de Cinza”.
Na hora, é possível achar que se trata de um tesão arrastado ao ponto de tentar comer a página e subtrair o direito de quem realmente precisa do banco, mas, com um papo civilizado, talvez se descubra que ela seja prejudicada das vistas e que precisa se grudar nas letras para entendê-las.
Uma pessoa com baixa visão não guarda, necessariamente, aspectos que revelem claramente sua condição sensorial capenga, como uma placa pendurada no pescoço com os dizeres: “Não estranhe, não. Posso atropelar uma parede sem querer”.
No universo das diferenças, ganha sempre aquele que não supõe nada, que não acha nada, que não faz de seus valores, de seu modo de vida e de sua maneira de interagir regra para os outros. Mecanismos de adaptação às deficiências estão cada vez mais desenvolvidos, e as peculiaridades humanas são também sensíveis.
Há quem defenda que o povão que acha que enxerga adote um símbolo universal que ajude a reconhecê-lo e a diferenciá-lo dos que são totalmente sem visão. Algo como uma bengala com as cores do arco-íris.
Não tenho convicção de que uma medida assim traria impacto a contento e ajudaria a educar a sociedade sobre mais essa diferença entre os “serumanos”. Acredito é na necessidade de ampliar a maneira de olhar para os outros e para suas peculiaridades de interagir, de ser feliz, cada um como pode, como quer e como precisa.
Olá Jairo!
Primeiramente parabéns pelo texto!
Percebo que a sociedade não nos reconhece por pura ignorância, eu mesma antes de ser diagnosticada com Stargardt não fazia ideia de que existiam pessoas nesta situação e hoje sinto na pele este problema social. No trabalho mesmo eu penei e muito para conseguir as adaptações necessárias para desenvolver minhas funções da maneira mais “normal” possível, isso porque ninguém nos concede os benefícios aos quais temos direito, pelo simples fato de não termos nossa deficiência estampada na cara. Por muitas vezes ouvi pessoas dizerem que eu me fazia de cega para enrolar no trabalho, usar fila preferencial, me fazer de coitadinha. Quando na verdade o que eu queria mesmo é que a empresa disponibilizasse recursos para que eu tivesse condições de ler meus emails sem ficar decifrando as letras “apagadas”, que eu pudesse usar o caixa eletrônico do banco ao invés do serviço no guichê, pegar ônibus sozinha sem ter que pedir para alguém ler o letreiro por mim, enfim se o sistema e a sociedade como um todo não fossem deficientes, eu também não o seria.
Luiza, a falta de informação atrapalha a vida de todas as pessoas com deficiência. Por isso, é preciso estar sempre batalhando por mais espaço na mídia e em qualquer meio de divulgação. Um abraço
Olá Jairo, boa tarde? Descobri seu blog hoje e gostei muito do que li. Não enxergo nada mas já convivi muito com nossos queridos amigos de visão subnormal. Ainda bem que as novas tecnologias dos leitores de tela podem ajudá-los, pois fico muito triste quando eles me contam que não conseguem aprender o Braille. Como esses programas falam o que escrevemos, fica fácil pára todos, sugiro que vc continue assim, muitos abçs, sua colega, Lúcia, adorei!
Volte sempre, Lúcia! Um abraço
Volte sempre, Lúcia! Um abraço e obrigado
Parabéns pelo texto, pela abordagem de um problema que passa quase desapercebido na sociedade brasileira: as pessoas com baixa visão. Os que não conseguem enxergar a linha de ônibus (com suas letras de cores e tamanhos que até pessoas “normais” tem dificuldade), os que passam por uma pessoa conhecida e não a identifica, os que não conseguem ler o que o professor escreve no quadro, os que precisam de lupas para ler um jornal, um livro… mas que mesmo assim, se esforçam o máximo para conseguir seu espaço.
Muito obrigada !!!
Estou perdendo a visão, sempre tive baixa visão mas no meu caso posso perder meus vultos…
Vc nem imagina como me encontrei neste texto !!!
Grande abraço !!!
Que bom, Cristina! Abraço
ADOREI O TEXTO. sou jornalista e portadora de Stargardt. Vivo num mundo adaptado, mas e dai? Em nosso grupo existem várias histórias engraçadas, até de gente que caiu no boeiro e as minhas aventuras diárias no metrô. Agradeço por entender e passar para frente.
😉
Olá Jairo! Muito obrigada por divulgar a existência das pessoas com baixa visão! Estou nessa luta pela compreensão dessa classe que não é conhecida pela sociedade em geral. Sou arquiteta, e tenho trabalhos voluntários na internet para a informação de pessoas com a doença de Stargardt, que é uma doença degenerativa da retina, que causa a baixa visão. No site http://www.stargardt.com.br fazemos a divulgação da doença e seus problemas, a convivência cotidiana e as tecnologias que nos auxiliam nas atividades. Tenho outro trabalho de ajuda a aumentar a autoestima das mulheres deficientes visuais para se maquiarem sozinhas. Ensino a elas a se embelezarem e mostrarem para a sociedade que somos capazes de realizar tudo o que desejamos. Se quiser conhecer esse trabalho, o blog é http://www.belezanapontadosdedos.com.br . E mais uma vez agradeço muito por seu interesse em nossa causa! Um grande abraço.
Vou visitar, com certeza, Lucia! Um abraço
Você, sempre abordando temas delicados com esse seu toque descontraído, realista e bem pecular ao nosso cotidiano dos “malacabados”, e ao mesmo tempo de fácil compreensão para todos!
Por isso que pra mim, foi uma honra enorme poder ter feito um pouco parte deste texto, desta história, deste tema um pouco desconhecido e ignorado em nossa sociedade.
Sei que cada um de nós com baixa visao temos diversas historias pra contar, diversas coisas pra sugerir, diversas coisas pra reclamar, diversas coisas pra rir de nós mesmos (logicamente depous q tal fato ocorre, rs), mas acho que abordamos situações mais corriqueiras, situações que dispertam o “não entendimento” de quem nos vê no dia-a-dia…sabemos das particularidades de cada um, mas pra mim, desta forma me identifiquei plenamente.
Obrigada mais uma vez, amigo Jairo. (Pois ja ganhou uma amiga) 🙂
Sempre topo desafios que visem mais inclusão, legítima inclusão, Denise! Beijossss
Obrigado pelo texto, Jairo. É muito importante que se divulgue, para que a sociedade tome conhecimento dessa condição, que aflige um número considerável de pessoas. Os portadores de baixa visão (em termos técnicos, visão subnormal) enfrentam inúmeras dificuldades, pois não são facilmente identificados como deficientes visuais. A maioria deles não se prepara para a vida com as mesmas técnicas que os cegos, e acabam correndo mais riscos no trânsito, sofrendo mais encontrões, tropeçando mais, chocando-se contra objetos indevidamente colocados nas calçadas (tais como as famigeradas cestas de lixo), etc. Eles também evitam pedir ajuda, pois ficam constrangidos de ter de explicar que, embora não pareça, não enxergam o suficiente. Minha esposa e filha são portadoras de aniridia congênita, uma condição que, além da baixa visão, vem acompanhada de uma variedade de problemas oculares que podem levar à cegueira. Com o objetivo de ajudar os portadores ou pais de crianças portadoras de aniridia, compartilhei informações e experiências na página Aniridia Brazil (facebook.com/aniridiabrazil).
Um abraço,
Vilmar, seu comentário, por si só, é um texto maravilhoso… Obrigado!
O mal do século
A sociedade moderna,premiada com tantos recursos tecnológicos,se vę ameaçada por um mal que Atrofia sua Mente e Estreita Sua Visão.
Sociedade moderna ou Era das Trevas?
Excelente texto e facilmente adaptado a outros contextos de visão…
Eu tenho 42 anos e esbarro em tudo também e em todos….faz tempo. Aliás, quando era mais jovem, me falavam que eu era “metido”. Depois de muita explicação, entenderam que eu não reconhecia quando me estendiam a mão como cumprimento.
Jairo! Excelente a tua colocação! Todo o texto me é comum, pois a minha Filha Adolescente(fará 17 anos em breve) é uma “Baixa-Visão” sorridente, displicente e inteligente…rsrsrs! Realmente é uma deficiência não tão aparente e no caso da minha jovem, não dá pra notar! Ela anda com Celular dela na mão e se precisa compartilhar, é assim mesmo como a jovem dos “50 tons de cinza”, cola os olhinhos na tela, lê, afasta um pouco, acha o teclado e digita! E nessa “wibe” ela não é incluída, ou integrada, não! Ela é Conectada! Mas haja esforço, dor de cabeça, cansaço visual do que tem pouco de visão! E assim se vai indo pelo trilho do caminho sem finitos….Abraços e Muito Obrigada!
Sheila, tenho certeza que com uma mãe tão mente aberta, tão atenta, sua filha a de ser uma grande mulher!!! 😉
Adorei e me emocionei com o artigo, tenho uma garotinha de 3 anos que passa por situações parecidas, só que correspondentes a sua idade, e realmente muitas pessoas não compreendem a situação. Ficou muito preocupada com futuras situações, mas tentamos prepará-la para as dificuldades da melhor forma. Parabéns pela iniciativa.
Adriane, prepará-la é fundamental! E dá certo.. um abraço
OI Jairo. =)
Adoro o sue jeito leve e divertido de escrever.
E agradeço por falar da baixa visão.
Eu tenho ceratocone há mais de 20 anos e sei bem o que são esses tropeções e essa “tranquilidade” para escolher ou fazer coisas que dependem da nossa “super visão de raio x além do alcance”.
Assim como você procuro fazer de tudo uma história divertida e sem dramas.
Obrigada pelo exemplo. Obrigada pelo seu bom-humor de sempre.
Um forte abraço e um largo sorriso.
Esse sorriso foi gostoso demais da conta, como diria minha tia Filinha!
MUITO BOM, SOU MÉDICO E PORTADOR DE RETIOSE PIGMENTAR, SINTO NO DIA A DIA OS TROPEÇÕES COM OBJETOS E PESSOAS, POR SORTE TENHO PROCURADO FALAR PARA AS PESSOAS SOBRE A BAIXA VISÃO, O GRUPO DE RETINA ESTA LANÇANDO A BENGALA VERDE PARA NÓS PORTADORES DE BAIXA VISÃO A TENTATIVA DE MINIMIZAR OS CONSTRANGIMENTOS.
Estou acompanhando as discussões, Luiz! Obrigado pela participação.. Grande abraço
Excelente artigo, Jairo Marques, este é realmente uma realidade que nós os “serumanos” que “tudo vemos ou vemos tudo”, de mentirinha, igoramos este parcela que nunca soube o que é enxergar com clareza.
Excelente, coroando com “No universo das diferenças, ganha sempre aquele que não supõe nada, que não acha nada, que não faz de seus valores, de seu modo de vida e de sua maneira de interagir regra para os outros. Mecanismos de adaptação às deficiências estão cada vez mais desenvolvidos, e as peculiaridades humanas são também sensíveis. Acredito é na necessidade de ampliar a maneira de olhar para os outros e para suas peculiaridades de interagir, de ser feliz, cada um como pode, como quer e como precisa”.
Obrigado, Afonso! Grande abraço