Cotoveladas na cara
“Bateu de frente, é só tiro, porrada e bomba.” A cada vez que se concretiza pelo mundo a ameaça da filósofa do funk, Valeska Popozuda, multidões passam a compor a estatística dos incompletos, dos semivivos, dos fora da caixinha.
A violência, seja ela urbana ou militarizada, gera deficiências com velocidade que insulta e desanima os melhores e mais equipados centros de consertar ou remendar gente de todo o planeta. Mesmo assim, segue-se brigando, atirando, soltando mísseis e tramando novas maneiras de destruir um pouco mais a máquina humana.
Após a explosão de uma bomba sobre uma escola, o número que publicamente se conhece e se difunde é o de mortos. Ficam para trás os que perderam a visão com a fumaça, com estilhaços e com a poeira levantada. Ficam para as famílias os que deixaram partes do corpo embaixo dos escombros. Ficam para a sociedade os reflexos de cidadãos surdos em decorrência dos estrondos gerados.
Balas perdidas e tiros pelas costas destroçam medulas e encaminham para cadeiras de rodas, quando não para o túmulo, com a facilidade que jamais os alvos atingidos voltarão a encontrar para construir felicidade.
Há também as deficiências produzidas pelas cotoveladas na cara, por golpes de lutas marciais e vale-tudo aplicados por machões descompensados. Essas deixam permanentemente mal-acabadas as emoções, a segurança de tocar o dia a dia e a autoestima.
Os gabinetes e os covis, onde, sempre com a justificativa de alcançar um “bem maior”, se decidem o início ou a continuidade de uma guerra devem ser protegidos dos ruídos da dor e do desespero de realidades partidas.
As conquistas e as derrotas avançam, passam, mas as histórias de cada pessoa fica para sempre amputada, cega, despedaçada, abalada. Para sempre se reviverá um drama e se regurgitará uma angústia.
O assustador é que, nem mesmo quando os exemplos dos produtos saídos das fábricas de deficiência são meninos e meninas que mal tiveram a chance de desfrutar de sabores fundamentais de existir —como a liberdade e o coração em desarranjo de amor—, se consegue mobilizar a contento contra a violência, contra a guerra.
Angustiante pensar que nenhuma exposição de horror foi ainda capaz de parar a produção de deficiências pela violência: não importam a mulher quase morta pela cotovelada do irritadinho, os que perderam braços e pernas por explosivos em Gaza, a cabeça rompida do corpo no deserto, a rosa que dilacerou entranhas em Hiroshima.
Tudo parece tão distante das “timelines” engraçadas geradas pelas redes sociais, do animado almoço de família aos domingos, das férias divertidas em Bariloche, que já alivia soltar um “que barbaridade” quando se escuta o estampido de um fuzil descompassando uma vida.
Quanto menos houver empenho profundo e compromisso incansável para a semeadura de uma cultura de paz, em todos os terrenos, quanto menos se cobrarem firmemente de líderes ações antibélicas e antiviolência, mais os produtos da fábrica de deficiência e as cotoveladas na cara vão ganhar proximidade, interrompendo destinos imaginados tranquilos e promissores.
Uma das maiores violencias cometidas contra o ser humano diariamente é o caos para ir e vir do trabalho. Ao longo do tempo, no mínimo diminui o tempo de vida drasticamente, comprovado por estatisticas médicas, e dissolve a familia, anulando qualquer chance de sucesso na educação dos filhos, devido a distancia a que se submete seus membros. Duplo lamento – nós construimos esse mecanismo. E não parece haver qualquer solução sequer a longo prazo. Suas consequencias se resumem numa frase – esse é o verdadeiro fim do mundo.
Constatar os óbvios das violências não podem continuar a serem matérias das mídias; que tal começarem a fazer intensivas campanhas em prol do resgate da segurança, mesmo que custe “fogo amigo” para quem quer que seja afinal, estamos as vésperas de eleições.
Tetsuo, o Sr. por aqui?
🙂
É meu caro Jairo, você tem razão, quando há um desastre se fala em x ou y mortos e quando muito, em tantos “feridos”, mas o que é um ferimento, ou o que ele pode causar? ai vai de um simples arranhão até uma vértebra rompida…. nosso mundo está cada vez mais violento e não sabemos aonde vamos parar….
abraço,
Abraço, Ronaldo
Eu e o jornalista Diogo Mainardi também levamos uma “cotovelada na cara” quando do nascimento de nossos filhos . Sua história é narrada no bonito livro “A Queda”, de sua autoria…A história de Mainardi e seu filho Tito se assemelha muito à minha história e meu filho Juninho…
“Cotoveladas na cara” leva-se para o resto da vida, a cada dia, quando se tem um filho com paralisia cerebral em decorrência de erro/negligência médica no interior dos hospitais do antigo INPS, hoje conhecido como SUS…
Jairo Marques. Bonito demais e emocionante o seu texto. Parabéns…
Diria mais: “…semeadura de uma cultura de paz em todos os terrenos”, inclusive no interior dos hospitais, onde, muitas vezes, se pratica uma Medicina omissa e negligente prejudicando para sempre pacientes e seus familiares…Ninguém é obrigado a estudar Medicina. Mas, se o fizer, que o faça com consciência e noção do peso da responsabilidade…
Obrigado, Sergio. Excelente seu alerta