A dança dos passarinhos

Folha

A mulher me abordou com o desespero de quem havia perdido o último trem com destino a Pasárgada: “Amor, um casal abandonou seu bebê recém-nascido só porque ele tinha síndrome de Down!”.

A notícia tinha requintes mais profundos para provocar nó de dor no coração. O desejo do casal de australianos de serem pais –não de ter filhos, imagino eu– era tão grande que encomendaram a cria de uma barriga de aluguel nas Filipinas.

A mãe que gerou a criança, pelo que se divulgou, resolveu criar o bebê em sua pobreza, em sua falta de informação básica sobre as condições do filho, mas respeitando uma voz interna desesperada de que a vida humana é diversa.

Pode parecer inimaginável para quem já subiu na torre Eiffel, para quem já beijou a mão do papa ou para quem já jogou calcinha para o finado Wando pensar que seja possível habitar o planeta em condições tão adversas como as impostas pela intelectualidade descompassada, pela imobilidade total e até mesmo pela cegueira.

Os sonhos individuais de felicidades e de realizações transbordam em mares considerados coletivos para esses valores. Quando alguém não possui habilidade para seguir o padrão, o descarte passa a ser um caminho tentador.

Quando se somam a isso a falta de coragem para lidar com diferenças, a carência econômica e a ausência de apego, crescente entre crias e criadores, até a lata do lixo parece destino mais honesto do que ter dignidade para prover, educar e abraçar.

Não existem estatísticas oficiais que deem precisão ao fato, mas uma penca de “serumanos” deste país foi abandonada, juntamente com suas “inabilidades”, em leitos hospitalares, abrigos e ao deus-dará.

Acabo de ler um livro simples, mas capaz de abalar mastodontes com a sensibilidade de seus relatos. Trata-se de “Pulmão de Aço”, de Eliana Zagui, que foi deixada pelos pais no Hospital das Clínicas de São Paulo há quase 40 anos, quando o vírus da paralisia infantil entrou em seu corpo sem convite e nele fez uma festa de arromba.

Atada a um respirador que evita a fuga do último suspiro, a artista plástica brinda, pinta, escreve, chora e sente saudades à sua maneira. Em uma passagem da obra, ela relata um dos momentos que mais se deliciava, na sua infância e adolescência.

Aos sábados, por volta das 23h, muito tarde para um ambiente hospitalar, o apresentador Gugu Liberato aparecia na tela da TV soltando a franga e coreografando uma exótica “dança do passarinho”.

Eliana diz que, vez ou outra, a chefe da enfermaria, abruptamente, desligava a televisão antes da exibição, o que gerava nela muita tristeza.

Às vezes, a felicidade é mesmo igual à da música chiclete: “Passarinho quer dançar, o rabicho balançar porque acaba de nascer”. A complexidade a respeito de um futuro sem asas, do sentido de seguir adiante sendo mais lerdo que os outros pode ser discutida e pensada, mas bem longe de abutres.

Sorte minha e da minha mulher, encontramos numa loja de departamento, dias atrás, um pai todo sorridente e agarrado com sua passarinha down, numa cena de pura alegria de viver, como diz a canção. Talvez ela não consiga planar sozinha e cruzar oceanos, mas aquele pai há de valorizar e apoiar as travessias de sua filha em qualquer pingo d’água que seja.

Comentários

  1. Fala Princeso!
    Nós dois sabemos muito bem a importância de ter pai ou mãe para nos amar e nos aliviar as dores da deficiência. Eles são fundamentais.
    Eu mesmo ouvi um dia de uma moça que eu tive muita sorte por passar no concurso público e ter o emprego que tenho hoje, mas na verdade a sorte que tive foi de nascer na casa em que nasci, onde meus pais não me tomaram por coitadinho e me empurraram vida adiante me ensinando que eu tinha que trabalhar e estudar “para trabalhar em um escritório”. Esta foi a minha maior sorte.
    Hoje, sendo pai de uma linda menininha, entendo bem melhor o que eles sentiram e sofreram comigo e, por isso, meu amor por eles e minha gratidão são infinitos.
    Ser pai (ou mãe) muitas vezes exige de nós abrir mão de muitas coisas, mas cada momento que passo perto da minha mocinha faz valer qualquer sofrimento.
    Tenho pena de quem é tão pequeno a ponto de abandonar um filho. Muita pena!!
    Abraço princeso! Fiquei te devendo uma pinga, mas pretendo pagar em breve!!!

    1. Amigão, vc nunca fica devendo, sempre tem crédito! Esse texto foi parido a partir de uma forte recomendação sua! Abrasssss

  2. Estimado Jairo, agradeço a Deus todos os dias,ser mãe do Alessander(adulto com Síndrome de Down),campeão de natação, e trabalhador,ministramos conferencias nacionais/internacionais,ganhamos 4 Prêmios nos EE.UU.,pelas pesquisas, que o Brasil não valoriza nada!PARABÉNS PELO TEXTO!Profa.Dra.Deisy Mohr Bauml e Alessander Bauml Orlowski

  3. Impossível ficar ausente, sem dar o meu aval para o raciocínio brilhante, do escritor que é você Jairo Marques!
    O fato existe, mas a maneira como você relata, não apenas nos torna conhecedores, mas nos envolve, de modo a fazermos parte dele. Contudo: cada vez mais me convenço de que qualquer homenagem prestada ate hoje aos meus pais, ainda é pouco para agradecê-los, haja vista tive pólio ainda bebê, e a palavra inclusão foi com eles que conheci. Sou uma dos seis filhos do casal, nascida e criada no interior do Ceará, sem recursos financeiros, porém recebi a melhor educação “amor” as melhores vestes “virtudes” e o mais certo caminho a percorrer “o caráter” hoje estou alçando os meus voos, e de onde me veem a certeza que devo buscar, tudo que é meu de direito? Da confiança que meus pais semearam na estrada da minha vida. Obrigada Lindo coração você tem Jairo Marques. Na expectativa por novos relatos!

    1. Querida, o seu relato apenas reforça brilhantemente o meu texto: o que todo o mundo precisa é de atenção, um pacotinho de coragem, de incentivo e de orientação. Quem torna a criação de um filho com deficiência em algo extremamente complexo ou trabalhoso precisa aprofundar mais seus conceitos de vida! Um abraço

  4. Jairo,
    pura sensibilidade num texto humano, lindo como deve ser a vida. Parabéns por ter esse dom de transmitir tanta delicadeza sem ser piegas.

  5. Tive que ouvir de uma colega de trabalho uma pergunta mezzo-cretina mezzo-ignorante se eu iria ‘devolver’ minha filha, após o diagnóstico. Respondi que tinha perdido a nota fiscal, mas parece que ela não entendeu a ironia. Você falou em estatística, mas creio que não interessa aos gestores públicos saber como anda a vida dos mamulengos país afora, basta dizer que eu é que tive que perguntar para a mulher do censo se não queria saber se na minha casa havia alguma pessoa com deficiência. A resposta? “Não tem essa pergunta no checklist”. Que beleza, né? O que acho de fato inimaginável é a existência (persistência?) em pleno Século XI, de gente sem emoção, que busca a adoção como quem procura um cachorrinho.
    O livro da Eliana Zagui eu li de um só fôlego, mas já faz tempo. A história dela é também inimaginável, desta vez no bom sentido.
    Texto soberbo, meu rei. Como sempre.

  6. Esse texto me lembrou uma situação que vivi em meu local de trabalho e que me fez desenterrar a Vera Verão…
    Trabalho em um hipermercado na zona norte de São Paulo e temos como colegas de trabalho dois garotos com down…
    E atendendo uma cliente, semana passada, a mesma conseguiu soltar a perola da vida dela…
    _ Coitado… sabe Deus o que ele está pagando nesta vida para ter vindo com essa doença…
    EEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEPA… QUANTA SANTIDADE EXISTE EM SUA AUREOLA MINHA SENHORA PARA JULGAR E CONDENAR UMA PESSOA, SENDO QUE AO TOMAR ESSA ATITUDE A SENHORA COMETE 3 PECADOS NO MINIMO, O DE JULGAR, O DE SER DEUS E CONDENAR E O DE USAR O NOME DE DEUS EM VÃO…????
    Eu convivo com pessoas deficientes desde que me entendo por gente, quando era pequena, minha vizinha e até hoje amiga, tem 2 filhas com deficiência visual e intelectual, cresci com elas, e vejo qualidades nelas que, ao meu ver, superam qualquer deficiência, elas fazem trabalhos domésticos, ao modo delas, e se saem muito melhor do que muitas mulheres…
    Os meninos que trabalham comigo, empacotam as compras desses “santos seres humanos”, igual ou melhor que os outros meninos que fazem o mesmo trabalho.
    Um deles, ano passado, teve uma doença nos olhos e ficou afastado por quase um ano, no dia que retornou ao trabalho, parou o mercado, todos os funcionários queriam abraçá-lo.
    Não entendo o porque, alguns seres humanos, se sentem superiores e melhores…
    É obvio que a cliente não gostou da minha atitude, mas não reagi para que ela gostasse e sim para que refletisse, no minimo!

  7. Seu texto me fez lembrar de vários episódios: 1º) minha mãe foi numa instituição de defs. “intelectuais” (ela acredita até hoje que muitas crianças desse “depósito” não eram intelectualmente rebaixados, eram, na maioria pcs. Ela nunca mais foi naquela instituição por alegação de que a fazia ficar muito triste e revoltada com os pais que as abandonaram lá, em vez de investir nelas (crianças) e, ao invés disso, só as visitavam uma vez ou outra. 2º) minha mãe ouviu de meu tio, irmão de meu pai que “ela e meu pai teriam que continuar sofrendo, pois tinham uma filha com deficiência (que sou eu)”, depois do enterro do filho de 19 anos dele, pois o problema dele havia sido resolvido, quando encontraram o corpo dele ( o filho dele havia sido raptado e morto e isto havia acontecido em 1982 mais ou menos). 3º) de uma “escolinha depósito” para pczinhos, onde os pais deixavam-nos lá das 7:30 hs até as 17:00. Eles não gostavam das férias e um dia o prof. de artes deixou-os em frente a uma parede branca por 2 horas e nenhuma delas chorou ou reclamou. Quem quase ficou louco foi o prof., porque ele havia esquecido que a realidade deles em seus lares era parecida com aquela situação. Em todos esse casos o abandono não era o descrito acima, mas era camuflado. Se eu fosse filha de meu tio, muito provavelmente ele havia me colocado numa dessas instituições “depósitos”, pois sou pc e naquela época, era muito pior do que agora. Ainda bem que minha mãe não me abandonou de nenhuma maneira, por isso sou “sortuda” e agradeço muito a ela. Bjs.
    Ps.: se vc me cortar, não tem importância, embora fique um pouco triste.

    1. Uai, Su, por que eu “cortaria”? Já aconteceu alguma vez? Seus relatos são sempre muito fortes, profundos, mas ajudam demais a construir a realidade. Sua força de expressão vem de sua vivência e a sua reação legítima diante de tantos “tratores” que não respeitaram seu caminho. Vc sabe, mas repito que tenho carinho e admiração por você todos os dias…. Beijoss

  8. Nunca entendi como as pessoas conseguem tratar outras como se fossem objetos,trampolins..quanto mais descartar outro ser vivente ( da mesma espécie ou não, com ou sem arranhões no capô) como se fosse um copinho plástico destinado a entupir um bueiro..

  9. Lindo! e, isso me lembra quando fazia Astrologia na TV, e um o pessoal da Ala Psiquiatra do Hospital SP, foi lá ao programa para pedir as famílias que por favor não abandonassem seus filhos e familiares no hospital, pq eles estavam morrendo de abandono e não de HIV, enfim a ignorância humana… Essa realidade do bebê com Down, é simplesmente sem comentários, estamos em 2014 e a desumanidade ainda prevalece.

  10. E tantos anos depois eu não aprendo que não se deve ler seu blog durante o expediente, fica duro esconder o aguaceiro…

  11. Aff, que texto emocionante de manhã logo cedo!!!!! Lendo, me lembrei de uma colega, cuja filha down era queridíssima em todo o TRT onde trabalho, ia para as confraternizações, dançava, beijava, afinal abalava todo mundo. E quando Maíra faleceu (esse era o nome dela), não me esqueço de uma fala da tia na missa: “Quando vc nasceu todos choramos, mas hoje, com a sua morte, sabemos o verdadeiro significado da tristeza”. A família e amigos TODOS sentiram muito sua ida…Hoje, a mãe de Maíra, que toda a vida foi muitíssimo ativa, leva à frente um projeto de inclusão, junto à Universidade Federal daqui, e diz que assim o peso de não ter mais a companheira fica mais leve… O que se dizer de um pai/mãe que abandona um filho, seja ele como for? Sem palavras….Parabéns pelo texto!!!

Comments are closed.