Verdades alheias
É quase incontrolável no “serumano” querer cuidar da vida alheia e, consequentemente, avaliar que sabe o que é melhor para os outros e até tentar tomar atitudes com o talão de cheques que não lhe pertence.
Escrevo sobre algo diferente e mais significativo do que aconselhar, orientar. Escrevo sobre tomar para si uma verdade que você não construiu, que você não conhece profundamente e que você assume com valores próprios, não com conhecimento de causa ou com legítima propriedade.
O problema maior de construir verdades sobre os outros é a injustiça e o confinamento de ideias em torno de algo que, olhando mais perto, são avaliações errôneas, distorcidas. Isso afeta a abertura de oportunidades de crescimento, a vaga para o time titular e a igualdade de uma maneira geral.
Uma pessoa cega, por exemplo, pode ter muita autonomia, ao contrário do que se pode pensar e julgar apressadamente. Não ver não impede de casar, ter filhos, viajar, subir escadas e soltar pipa em tardes de ventania.
É comum, porém, que pessoas com deficiência tenham de se explicar cotidianamente para os outros sobre suas condições, decisões e possibilidades. “Não, o bebê não é do vizinho. Fui eu quem fiz”, diz o cadeirante com o filho no colo. “Não ouço, mas compreendo a letra da música, sim”, conta o surdo na balada.
Age-se —ou deixa-se de agir— na realidade dos outros pela pretensão de supor que seus valores e seus conhecimentos são os certos e são os únicos. Pouco se exercita tentar entender que não há apenas uma maneira de vencer uma mesma montanha.
Uma das figuras mais fantásticas que conheço se chama Leandro Kdeira, sendo a segunda parte de seu nome uma alusão a sua condição de vaguear em uma cadeira de rodas motorizada.
Ele deixou de andar do dia para a noite, aos 14 anos —hoje tem 31—, em virtude de uma doença dessas que, a cada dia, leva de seus “escolhidos” um bocadinho dos movimentos, da capacidade de dançar o “Lepo Lepo” em sua coreografia original.
Ao olhar Leandro por fora, sem visitar sua alma e suas inquietudes, verdades sobre sua condição brotam aos borbotões: imóvel, coitado, triste, “deprê”, dependente. Permitindo que ele mesmo conte suas verdades ou com um pouco mais de apuro ao sorrisão do meu amigo “mal-acabado”, uma nova realidade se apresenta.
Leandro, como ele mesmo diz, “pegando emprestado um pouco da energia dos outros”, quebra todos os “nãos” e vulnerabilidades que o rodeiam e apresenta possibilidades e capacidades diversas de fazer por si mesmo.
É um exercício desafiador ter um pouco mais de cuidado para evitar rotular os outros por meio de impressões que são suas apenas. Mas essa atividade é divisora de águas na vida de quem possui alguma limitação física, sensorial ou intelectual.
A natureza, a inteligência e a necessidade são craques em criar possibilidades que subvertem a lógica. Antes de soltar aterradores “ele não pode”, “ela não consegue”, “ele é um sofredor”, “deixa que eu faço para você”, seria interessante somar mais informação e mais pluralidade a suas verdades.
Jairinho, bem oportuno esse post e essa discussão. Antes de ser TO, eu tb participava do time do senso comum e pensava que as pessoas com deficiência precisavam ser “tuteladas” em muitos aspectos. Com a formação (tanto acadêmica quanto a humana – que conhecer e conviver com os amigos do blog proporciona) cada vez mais vejo o quanto não sabemos. Ninguém melhor do que o próprio sujeito para dizer, apresentar, opinar e decidir sobre sua vida e suas questões, nosso papel enquanto profissionais muitas vezes é o de apenas facilitar o diálogo.
As nossas “verdades” são apenas pontos de vista, e como é rico quando estamos abertos para o outro e para experimentar as lentes que esse outro usa para ver a vida… O Lê dá um show nesse aspecto! Grande beijo e parabéns pelo post.
Amei essa reflexão, Paulinha… e que bom é ler vc por aqui! 😉
Olá Jairo, este entrou para o hall dos mais belos textos seus que eu já li.
Vez por outra precisamos de uma indicação de caminho, (caminho em todos os sentidos). Isto não significa que tenhamos que segui-lo, e ter alguém falando todo o tempo, faça (a) ou faça (b), como se fôssemos incapazes de decidir, isto ninguém merece…
Só vou deixar um relato pessoal.
Sou cego e tenho uma filha e sou separado da mãe dela.
Estou casado outra vez, e minha filha mora conosco.
Agora vem a parte engraçada…. A minha es é de ascendência japonesa e a atual é de ascendência chinesa. Resultado é que para todos que tem coragem de perguntar ou de demonstrar, minha filha é filha de minha mulher. E quando tenho sorte sou tratado como um agregado da família.
Outro dia estávamos no caixa da padaria e minha filha perguntou:
Pai posso pegar um chocolate?
A moça do caixa tomou um susto e falou:
Ele é seu pai? Ela respondeu :
É, por que, não pode?
Estava esquecendo, minha filha tem 13 anos e não é exatamente um primor de delicadeza…
Um abraço!
Dorcival, essa semana do mercado deve ter sido hilária ahahahhahaha…. a gente sofre, mas se diverte, às vezes, né? kkkkk… abrassss
A Sinhá da Camiranga e minha Eliana disputam cabeça com cabeça o título de maiores apaixonadas pelo Leandrão. Sorte dele que não sou ciumento. Leandro é um desses carinhas que esbanjam carisma, e diuturnamente desmente essa corrente de pensamento boboca, que diz que deficiente é por natureza ‘imóvel, coitado, triste, deprê, dependente’. Essas pessoas deveriam botar a cara pra fora da janela de vez em quando. Não me lembro de ter ido a uma de nossas festas sem encontrar o Leandro, nas passeatas estamos sempre lado a lado, o carinha é meu brother de primeira hora e muito me honra ser seu amigo. Gosto muito de quem tem atitude, coisa que ele tem de sobra. Aliás, a colação de grau dele está pra acontecer, alguém sabe quando será?
O Leandro é comprometido. Isso é raro! abrassss
Tô “sorteiro”,Jairão! rsrs.
kkkkkk seeeei!
Ta “sorteiro” por opção que eu bem sei ta?
Uuuuia
Meu amigo Rogério,sempre generoso comigo.
Não tem data ainda da colação,só sei que termino até o final de Junho.
Abraços.
Ei, eu tb to nesse páreo pelo Lê! Meu brother e companheiro de crises e conselhos, conversas, feiras, passeios culturais… Amo e aprendo muito! 🙂
Jairo, tive a honra de conhecer o Leandro, sei que ele é avesso a confetes, mas ele que me desculpe, não posso calar.
A presença do Leandro, já é um presente para qualquer um de nós. Disposto, corajoso, inteligente, companheiro, Alegre, são apenas algumas das qualidades que podemos encontrar nele.
Me mostrou um mundo que até então eu não conhecia e falar ou julgar sem conhecer é um grave erro do ser humano.
Quem me dera poder realizar 1/3 de tudo o que o Leandro faz.
Homenagem mais que merecida!
Cleia, concordo plenamente com suas palavras!!! Beijos
Tá desculpada,Cleia. rs
Obrigado pelo carinho de sempre.
A mudança de valores é a principal, creio eu. Por isto é uma discussão ética. A mudança de valores de toda a sociedade e, porque não, da gente também. Isto irá levar tempo e eu já não acredito que vou ver esta mudança acontecer, não. Pra mim já é uma utopia que é realizável lá, num futuro bem longínquo, quando o homem virar homem de verdade. Bjs.
Vou falar bem baixinho: infelizmente, tb acho que levará muitos e muitos anos… bjos
Suely… não perca a fé, pois embora essa mudança tenha sido muito lenta, tem acontecido. Nós queremos alcançar tudo no momento em que idealizamos, mas temos que trabalhar iguais as formigas…
Ainda que esteja loooooooooooooonge do alvo, animo, fé e perseverança são ingredientes básicos.
Há 2 anos a trás eu não tinha a visão que tenho hoje, sou fruto dessa luta árdua, e quantos mais poderão ser, pois vim para fortalecer essa equipe, se vocês me aceitarem…
Aconteceu muito comigo, com meus amigos e conhecidos defs. de sermos tratados como o Leandro Kadeira. De sermos estigmatizados de incapazes, infantilizados etc. Até hoje é assim comigo. Dia 11 desse mês fui para a UniCamp participar de uma mesa de um encontro sobre neurociências e educação. Quando o médico que foi comigo daqui até Campinas disse que eu sou doutora, ele disse que a mulher que estava conversando com ele fez uma cara de “não pode ser! Ela é pc.” Pra mim, nada demais, mas para ele foi um choque a mulher, pedagoga, agindo desse modo. Penso que todo malacabado tem muiiittassss histórias para contar sobre estas coisas. Ainda falta muito chão para chegarmos aonde queremos, ou seja, sermos respeitados pelo que somos. Bjs.
Acho que se cada um cuidasse da própria vida, pra começar, já seria de grande valia. 😉
Falando em cuidar da vida dos outros, e aquele monte de processo que o povo te ameaçou no post do namorado quebrado da bunduda.. virou algum ou nem?
Absolutamente nada…. abrass
É isso Jairo, parece até que você conhece minha irmã, hehehehe…. ela é dessas que costumam ‘decidir’ pelos outros, sem saber se os outros ‘querem’ ou ‘precisam’ daquilo ou não. A nossa ignorância quanto às possibilidades das demais pessoas é muito grande e muitas vezes não sabemos enxergar isso….
E essas “decisões” vão desde atitudes simples como escolher um caminho até ações mais complexas, né, não?! Abrasss