O mendigo

Folha

Todos os dias, quando venho para o trabalho, troco olhares, impressões e bom-dia sem palavras com ele. Usa paletó puído, chapéu dos arredores do Panamá e muletas encardidas. Não tem uma das pernas, a esquerda, e pede esmolas a todos os que estão em seus automóveis parados no semáforo, menos para mim.

Não imagino que ele me ache sovina. Ele vê no para-brisa da minha “Kombi” o selo que indica que sou de seu time, o dos quebrados, e deve achar meio antiético tirar de mim moedinhas ou balas de hortelã.

Talvez possa parecer exagero poético meu, mas penso ser tênue o limite entre os deficientes limpinhos e os que estão na rua pedindo. O abandono familiar por alegada falta de condições de cuidar “daquilo” e a exclusão social para tudo formam uma mistura tão poderosa que apenas a rua é capaz de abrigar.

Certa vez, um mendigo cadeirante que arrecadava seu café, pão velho e cigarros pelas ruas do centrão de São Paulo me fez passar um apuro emocional desconcertante.

“Eu conheço você. É aquele jornalista, não é? Já li muito texto seu. Tem umas mensagens boas e umas graças engraçadas, viu? Como vai a vida?”

Fiquei meio trêmulo, condoído e me senti na obrigação de tentar fazer algo útil pelo meu leitor de rua. Palavras breves durante o sinal fechado decerto não saciariam sua possível fome ou seus vícios nem dariam um rumo novo àquela situação.

“Cara, por que pedir? Hoje em dia tem tanta bolsa miséria, tem abrigo da prefeitura, têm cotas para arrumar um trabalho…”

Ele sorriu com dentes falhos e feios. Meio entre a vergonha e a galhofa, ele me respondeu: “É complicado, é complicado”.

Só tive tempo de dar a ele um cartão —será que fui protocolar ou arrogante?— e pedir com ênfase “me liga!”. Nunca ligou, nunca mais vi e não sei se continua gostando dos meus rabiscos.

Reluto em colocar qualquer etiqueta que me exiba como especial, como exemplo, como puro creme do milho, mas reconheço que não é fácil, concomitantemente, buscar um espaço de cidadão e abrir espaço para a cadeira de rodas, o cão-guia, a bengala ou qualquer outro apetrecho de acessibilidade e inclusão.

Talvez seja por isso que o tiozinho do paletó e das muletas encardidas só me faça um aceno com a cabeça e, em seguida, um sinal de “firmeza” com o dedo polegar. Ele entende como poucos o lugar-comum: “Não tá fácil para ninguém”.

Embora existam milhares de charlatães que usam a cegueira, a paralisia e a surdez para amolecer corações que choram centavos, é realidade que deficiência escancara as portas da pobreza devido aos desafios que impõe para ser colocada no seu lugar: apenas uma diferença física ou sensorial do restante dos outros comedores de arroz com feijão.

É preciso ser bem atrevido para avaliar e chegar à conclusão de que não é preciso haver alguma proteção social firme e efetiva, como a Lei de Cotas, que minimize o impacto da ausência de condições dignas para que todos possam ser humanos.

Entendendo isso, talvez a consciência de meia dúzia de gatos-pingados que não acham legal bolinar mulheres no Metrô incomode menos quando se fechar o vidro da charanga e fingir que ninguém pediu um trocado.

jairo.marques@grupofolha.com.br

 

Comentários

  1. Como sempre, um belo texto, parabéns!

    As coisas estão realmente difíceis pra todo mundo, mas é muito pior para os deficientes que não tem e não tiveram condições de estudar e ter uma profissão.

    Sabemos que mesmo os que tiveram todo apoio familiar e estrutura pra se desenvolver não conseguem uma colocação no mercado de trabalho. Os que conseguem, geralmente estão em subempregos, infelizmente é essa a nossa realidade.

    Além disso, muitos deles são obrigados pelas famílias a saírem pelas ruas mendigando, vendendo doces ou algo como canetas, cartões, etc.

    Algo precisa ser feito urgentemente. Porque diferentemente de algum tempo atrás, a maioria consegue se tornar um adulto capaz de produzir e ter uma vida digna como qualquer outro ser humano.

    Só o que queremos é ter os nossos direitos respeitados.

  2. A sua comparação de um direito de dignidade com outro é absolutamente ridicula.
    Eu não sou obrigada a sofrer abuso sexual em um trem, da mesma forma que o deficiente não é obrigado a ser excluido da sociedade.
    Comparar duas coisas totalmente diferentes é que fez a profissão do jornalismo não necessitar de diploma.

    1. Vc precisa ler direito o texto para compreendê-lo e, só então, ter direito a fazer uma crítica inteligente. A sua leitura foi enviesada .. um abraço

  3. Da série perguntar não ofende: dia desses o Deputado Romário perguntou dos ingressos para pessoas com deficiência prometidos pela FIFA. Agora eu pergunto: e as cadeiras monobloco e automáticas prometidas pelo Governo Federal em 2013? Ninguém sabe, ninguém viu, ninguém tem data ou saem meia dúzia para eleitor ver na véspera da eleição?

    1. Já pedi entrevistas à presidência infinitas vezes… um dia, quem sabe, sacam que não se trata de uma resposta a meia dúzia de pessoas..

      1. O censo diz que somos muitos. A presidência acha que somos meia dúzia. É, nos restam as ruas mesmo. Desculpe-me se estou meio pessimista, adorei o texto, não é nada com você, viu, é só que o cenário é desanimador! Beijo e continue perguntando. Vou mandar e-mail para a Mara Gabrilli também. Como eleitora, tenho direito (e dever) de cobrar.

  4. Jairo,
    Dia desses uma mãe de um grupo me escreveu pedindo apoio a uma petição em que era solicitada aposentadoria para mãe de criança com deficiência.
    Tentei ser gentil, mas dizer que eu achava que toda mãe tinha que se aposentar. Que eu gostava de trabalhar e queria mesmo que minha filha tivesse acesso a boas escolas para que eu pudesse trabalhar tranquila. Que a escola oferecesse educação em tempo integral (escola pública e privada, que eu pudesse escolher entre as duas), que os serviços de saúde funcionassem num único lugar, me economizando tempo e dinheiro.
    Ela me respondeu que meu caso era exceção. Que eu conseguia trabalhar em tempo parcial, cumprir parte da jornada em casa e ganhar um salário digno, para pagar fisio domiciliar, bons médicos etc.
    Pensei e cheguei à conclusão que ela está certa. Quais profissionais conseguem pagar fisio domiciliar? Uma cuidadora para ter a criança em segurança? Para esses pais, que nem na escola tem o filho em segurança, depender de assistência é o único caminho. E aí cada um se vira como pode. Pede bolsa-família, LOAS, pede na rua. Como faz para comprar cadeira decente? E as terapias? Na lista dos ditos “excluídos”, as pessoas com deficiência estão realmente numa situação muito delicada…

    1. Dê, igualzinho a você, sempre “perco a noção” e acho que o povão quebrado tem condições semelhantes às minhas. Não tem. Devemos ser 0,1% que atingiu o nível “alguma condição de tocar adiante”. É um pouco nesse espírito que escrevi que todos estamos próximos à rua! Beijosss

      1. Eu entendi e acho que você tem total razão: estamos, mesmo, numa situação muito preocupante e de abandono, pelo menos é o que vejo! Beijo

  5. Hoje em dia não está fácil pra ninguém, conforme o RAP disse. Quanto mais pra malacabado pobre. Se for negro, então… a coisa pega ao triplo. Nós temos “sorte” por sermos de classe média, tivemos como estudar, não nos abandonaram e nem deixaram a gente para trás. Provavelmente eles sofram de triplo preconceito: o de ser def., pobre e negro (se for negro) e ainda por cima abandonado, pois não teve chances de estudar, de ter habilitação adequada etc, que a gente teve.
    Mudando de assunto e não mudando, quando eu ia pra uma escola à noite, perto da Paulista, sempre passava por uma rua meia escura, apesar de ser travessa da avenida. Lá eu encontrava 02 crianças pequenas (deviam ter 08 e 04 anos) de rua e sempre sorria para as 02. Uma vez uma delas me parou e disse que o irmãozinho dele me achava bonita. Eu gelei, porque pensei que eles iam me roubar e não era nada disso. Eles se sentiam um pouco “aquecidas” com meu sorriso. Depois daquele dia, eu não as vi mais. Eu me vi também com preconceito perante às crianças e senti vergonha. Bjs.

  6. A vida não é facil prá ninguém, mas prá alguns ‘malacabados’ como você diz, está mais dificil ainda…. acho que todos nós conhecemos um caso assim. Eu acabei ‘adotando’ um que está sempre aos finais de semana num semaforo da Av. Politécnica… paro converso rapidinho e vou embora.

    1. Ronaldo, pode ter certeza que sua atenção já é algo de valia… Muito legal o que vc postou… abração

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