Maturidade e deficiência
Meu povo, finalmente consegui me livrar do confete e da serpentina do Carna e já estou pronto para encarar esse restinho de ano … kkkkkkk
“Zente”, um tema que me fascina e me desperta o interesse de vida real é a velhice. Desde criança, sinto minha mente ligeiramente antiga. Tenho sintonia com as pessoas mais velhas, gosto das ideias dos mais velhos e me preocupo com os idosos.
Penso que deficientes e a galera da chamada terceira idade, seja lá o que isso signifique, possuem encontros diversos em suas caminhadas. Geralmente, os velhos têm muita sensibilidade com os “malacabados” e entendem suas demandas perfeitamente.
“Ah, tio, é que eles sentem na pele um pouco do que passa o povo quebrado”
Sim, faz sentido. E a maturidade também é um tempo de maior reflexão sobre tudo, inclusive para a ampliação do olhar para os anseios e necessidades dos outros.
Mas, com muita frequencia, tenho pensando no encontro entre as duas condições: a deficiência e a maturidade. Pouquíssimo se discute sobre essa questão, quase nada se estuda e a situação está colocada na atualidade.
Pessoas com deficiência estão vivendo mais, por razões diversas (melhores condições de reabilitação, mais tecnologia assistiva, mais medicamentos entre outros fatores).
Mas um corpo que teve de compensar uma função prejudicada seja ela física ou sensorial vai cobrar um preço “brabo” no futuro pelo esforço que desenvolveu. Estamos nos preparando para esse momento? Como se preparar? O que pode acontecer? Será que vai chegar o dia de termos de apoiar as mães que tanto nos apoiaram?
São questões ainda abertas e tenho a responsabilidade de, aos poucos, buscar respostas juntamente com “ceitudo”.
Para começar, convidei a jornalista, intelectual e preparadíssima Lia Crespo, que tem deficiência física e se aproxima dos 60, a dividir conosco um relato sobre esse momento de vida.
O resultado do que ela escreve é profundamente interessante, brilhante e digno de ser discutido, guardado e discutido.
Convido aos leitores a degustarem as palavras, a imaginarem as situações e, sobretudo, a ajudar a construir um debate sobre esse tema importantíssima para toda a sociedade.
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Neste ano, completo 60 anos, portanto, estou prestes a incorporar os direitos dos idosos aos dos deficientes. Recentemente, tive acesso a uma cópia em vídeo de um programa feito, em 1978, pela TV Cultura, sobre as dificuldades enfrentadas pelos deficientes na época. Dentre outros entrevistados, estão meus pais, meu irmão gêmeo (que, por coincidência, também é deficiente) e eu. Assistir a esse vídeo é fazer uma viagem muito interessante pelo tempo, pela memória e pela afetividade.
Nessas imagens, minha mãe, falecida em 2009, aparece eternizada nos seus 59 anos. Exatamente a idade que tenho agora. Ainda que na agilidade física e mental, minha mãe com 59 anos estivesse infinitamente melhor do que eu hoje, nesse vídeo, ela aparenta ser mais velha. Ou sou eu que pareço mais jovem nos meus 59 anos? Bem, há quem diga que os 50 anos de hoje são os 30 de ontem…
Esse vídeo me faz pensar… Quem era aquela Lia, uma garota de 24 anos, tão bonitinha e tão séria, que diz para a câmera uma fala típica dos deficientes daquela época, dos super-heróis pré-militância no movimento por direitos?
A jovem Lia, na flor da idade, tem grandes planos para si mesma e, de certa forma, foi muito bem sucedida. Mas, em 1978, ela não tem como saber como será a vida da Lia que, neste momento, está deitada na cama e digita num computador apoiado no peito. Três horas sentada numa cadeira de rodas se transformam numa experiência de terror. Ah, os exercícios para fortalecer as costas que a jovem Lia desdenhou…
A Lia de 1978 não sabe disso, mas ela faz parte de uma geração de pessoas com deficiência que estão vivendo mais do que a geração anterior, que estão sobrevivendo a seus pais. E isso tem trazido desafios antes não imaginados.
Na maioria das vezes, como no passado e ainda hoje, as mães são as primeiras aliadas dos filhos com deficiência. São as mães que tomam a frente e empreendem uma verdadeira via sacra em busca de reabilitação, educação, diversão e independência de seus filhos.
Como outras mães na mesma condição, incontáveis vezes minha mãe ficou internada comigo e meu irmão por conta das inúmeras cirurgias. Quantas vezes ela nos carregou no colo e viajou em pé em ônibus lotados, para que não perdêssemos um só dia de fisioterapia? O que seria de nós pessoas com deficiência sem nossas dedicadas e incansáveis mães?
Por isso e tudo o mais que ela fez por nós, é claro que, quando minha mãe descobriu, aos 88 anos, que estava com câncer de pâncreas, fiz questão de acompanhá-la em consultas médicas, para a realização de exames e durante as internações.
Evidentemente, o fato inusitado de a acompanhante da doente idosa ser uma cadeirante foi um fator complicador. Por conta dessa tendência a infantilizar e menosprezar os idosos e os deficientes, muitas vezes, minha mãe e eu percebíamos (não sem algum divertimento) a confusão na cabeça das recepcionistas e dos médicos em geral: “A quem devo me dirigir?”
Minha mãe ficou internada, muitas vezes por longos períodos, num dos melhores hospitais de São Paulo. Sem queixas a respeito do tratamento dispensado a ela por médicos e enfermeiros.
No entanto, a falta de acessibilidade trouxe-me, como sua acompanhante, dissabores e humilhações. Para usar o banheiro com independência, preciso de uma barra de apoio do lado direito e um vaso sanitário uns dez centímetros mais elevado do que o normal. Em todo o hospital, só havia dois banheiros com essas características. Nenhum nos quartos, nem mesmo nos andares em que minha mãe ficou diversas vezes internada. Sendo assim, eu precisava tomar elevadores a cada vez que necessitasse usar o banheiro. E, ainda por cima, tinha que disputar o uso desses dois únicos sanitários acessíveis com os funcionários do próprio hospital.
Por diversas vezes, fui à administração do hospital pedir alguma providência para tornar menos dolorosa aquela, já por natureza, difícil situação. Solicitei que o hospital comprasse um assento elevatório para o vaso sanitário. O equipamento poderia ser oferecido quando necessário e retirado quando não fosse útil.
Como justificativa arrolei uma série de leis e direitos, garanti a eles que o equipamento não seria usado apenas por mim, mas que, certamente, poderia beneficiar idosos internados e ainda assegurei que (já que a expectativa de vida da população tem aumentado e que as pessoas com deficiência também estão vivendo mais) o hospital deveria estar preparado para acolher adequadamente um número crescente de pessoas com deficiência como pacientes e como cuidadora de seus pais ou outros parentes idosos.
O assento elevatório seria um elemento a mais de acessibilidade que o hospital ofereceria para o conforto e a segurança de seus pacientes e acompanhantes.
Acho que não preciso dizer que nenhum dos meus pedidos desesperados, incluindo o que fiz, dois dias antes da morte de minha mãe, foi atendido. Nem mesmo o pedido para que os funcionários não usassem os dois únicos sanitários acessíveis. Pelo contrário, cheguei a ser destratada por um funcionário, que me mandou tomar o elevador para usar o outro banheiro acessível. (Depois da morte de minha mãe, escrevi uma carta ao Ministério Público relatando minhas agruras. Meses depois, recebi uma resposta dizendo que estavam fazendo uma vistoria de acessibilidade no hospital. Não sei no que deu. Nunca mais voltei lá.)
Minha própria experiência me fez refletir sobre o fato, constatado há algum tempo, de que muitos de meus amigos jurássicos do movimento em defesa dos direitos das pessoas deficientes também estavam vivenciando a condição de cuidadores e/ou acompanhantes de seus pais idosos.
Essa vivência também me fez perceber que, além do despreparo da sociedade, as pessoas com deficiência, quando precisam cuidar de seus pais idosos, muitas vezes, também se deparam com um fator complicador, pois, simultaneamente, elas estão tendo de enfrentar também o desafio de lidar com as dificuldades típicas da sua própria maturidade, ou seja, no momento mesmo em que ficam potencializadas as limitações impostas pela deficiência em si.
Nós, os jurássicos, durante grande parte de nossas vidas fomos educados e treinados para vencer individualmente os desafios e sermos independentes. Com a militância no movimento por direitos, aprendemos e ensinamos que não era mais nossa obrigação empunhar nossas bengalas canadenses para enfrentar e vencer heroicamente os obstáculos. Ao contrário, é nosso direito que as barreiras sejam removidas.
Muito se alcançou desde que os jurássicos começaram a luta por direitos no final dos anos 1970. Como resultado dessa atuação, temos uma legislação que, gradativamente, vem mudando o ambiente nas cidades e constatamos uma revolução cultural que, de modo irreversível, vem aos poucos transformando a realidade e a vida das pessoas com deficiência.
Apesar ou por causa disso, frequentemente, ouço dos jovens com deficiência um discurso recorrente pela superação, que me remete ao período anterior ao movimento. Discurso esse que desconhece o fato de que somos todos interdependentes e de que — seja qual for o nível de acessibilidade oferecido — nem todos serão autônomos e independentes, sobretudo, na velhice.
Com os jurássicos cansados de guerra se aposentando e os jovens com deficiência enaltecendo a superação, não vejo o movimento das pessoas com deficiência suficientemente preocupado com as necessidades advindas do desgaste físico, mental e emocional resultante da deficiência em si, assim como da maturidade.
Para ajudar àqueles que sempre as apoiaram e para continuar a viver com dignidade e independência, quando ficam sós, as pessoas com deficiência mais velhas demandam atendentes pessoais, tecnologias assistivas e serviços adequados a suas necessidades.
Com o envelhecimento da população brasileira, cada vez mais esses recursos serão indispensáveis. Nossa sociedade estará preparada para isso? Não, sem que haja investimentos financeiros, logísticos e, sobretudo, humanos. Não, sem que as próprias pessoas com deficiência enfrentem mais esse desafio.
* Lia Crespo é jornalista, com mestrado em Ciências da Comunicação (ECA-USP), doutorado em História (FFLCH-USP), militante do movimento em defesa dos direitos das pessoas com deficiência, desde 1980, e autora do livro infantil “Júlia e seus amigos” (Nova Alexandria, 2006), que trata de deficiência, de educação inclusiva e da importância da amizade para a construção de uma sociedade inclusiva.
Lindo texto!
Penso muito nessa questão, para nós PCs é muito difícil ter independência e autonomia para viver enquanto ainda somos jovens, imagina na maturidade…
Vejo muitos pais e nós próprios amedrontados com o futuro. Quem vai cuidar de nós quando nossas pais se forem? A grande maioria dos PCs, diferentemente de outras deficiências, sequer conseguem trabalhar, como vão se sustentar?
Será que é justo sermos uma carga para nossos irmãos e outros parentes? E a outra parcela de PCs que são praticamente “excluídos” dentro de suas próprias casas por irmãos e outros parentes?
Dá medo pensar no futuro, rsrs…
Tava sentindo sua falta, Lúcia!! Bjoss
Estava fugindo da barulheira do carnaval e das dores horrorosas que me deixam quase incapacitada pra vida, rsrs…
Beijinhos, obrigada pelo carinho.
😉
Jairo, acabo de ler uma boa notícia no “Cotidiano”da Folha…Senado isenta os deficientes físicos ( e mentais, devidamente acompanhados) do pagamento de pedágio nas rodovias brasileiras…
Trata-se de uma boa economia…
Eu li, Sergio…. mas ainda falta passar pela Câmara, falta regulação… enfim… Particularmente, tenho algumas ressalvas, mas falarei sobre isso futuramente…
O Centro Especializado Nossa Senhora D’Assunção, em Betim ,BH, Minas Gerais, atende portadores de sequelas neurológicas ( paralisia cerebral) com recursos de alto nível e ótima hotelaria. Mas necessário se faz que os deficientes tenham alto nível financeiro para lá se internarem…
Também a Aldeia da Esperança, no interior de São Paulo faz excelente trabalho com portadores de paralisia cerebral. Mas o aporte financeiro solicitado é altíssimo…Não é para o meu bico…
Os deficientes que atingem a maturidade, quer queiram ou não, precisam dispor( é obvio) de situação financeira que possibilite seu bem estar. (Capitalismo selvagem???)…
Conheço instituições religiosas hospitalares que se propõem a cuidar de idosos, deficientes ou não, mediante a doação de um bem imóvel à citada instituição, em caráter vitalício. Em troca, o deficiente não teria que se preocupar com hotelaria,médicos,enfermeiros, remédios ou cuidadores. Tudo seria fornecido, sem ônus, pela instituição…Mas, sai caro. Seria necessário pertencer a uma família abastada ou dispor de uma boa renda para usufruir desses privilégios… Se envelhecer já é complicado para os saudáveis, quanto mais para os deficientes físicos…
Quando digo “saudáveis”, sempre coloco entre aspas. Desta vez esqueci…
Percebi que a Lia Crespo está preocupada, enquanto deficiente, em transformar-se em cuidadora daquela que foi também sua cuidadora, no caso, sua mãe…
A minha análise diz respeito ao deficiente envelhecido. Que necessita de dupla ajuda pelo fato de ser deficiente e pelo fato de ter envelhecido…Em qualquer dos casos a situação financeira do deficiente/idoso tem que ser analisada com muito carinho e de maneira realista. Nesse caso, os familiares “saudáveis” têm um papel preponderante …
O jornalista Diogo Mainardi, em seu livro “A Queda”, relata sua luta jurídica no sentido de seu filho ser indenizado devido às sequelas neurológicas (paralisia cerebral) deixadas no parto mal executado de sua mulher…Mainardi colocou na justiça e seu filho Tito foi indenizado em mais de três milhões de euros (o erro médico ocorreu em Veneza, Itália)…O filho de Mainardi, ao que tudo indica, será um deficiente portador de boa situação financeira ao envelhecer…Mas, nem todo deficiente físico tem essa “sorte”…
Faz sentido, Sergio… e é uma preocupação que ainda vejo pouco difundida… abraço
Muita coisa já melhorou para os deficientes! MAIS,PODE MELHORAR MUITO MAIS! CONTINUE NA LUTA, QUE ALCANÇARÁ MUITO MAIS. FELICIDADES SEMPRE.
Como sempre Lia fez uma brilhante reflexão . Tive a sorte de conhece -la em 2000 e muito aprendi com ela. Me identifiquei bastante ao ler sobre o período em que foi acompanhante da mãe. Quem me conhece sabe do drama que vivo acompanhando minha irmã que faz tratamento contra Linfoma desde 2012. Foram varias internacoes. Ja vi funcionarios usando banheiros adaptados e constato que quartos e banheiros dos hospitais nao sao feitos nem para pessoas com deficiência e nem para pacientes com cancer. Como pensar em higiene adequada se os banheiros nao tem cortina. Falta ganchos para colocar toalhas, sem contar no espaco de manobra para os suportes de soro e outros remedios. As faculdades de engenharia e arquitetura precisam rever seu curriculo. Nao faz sentido precisarmos de leis ou multas para que estabelecimentos publicos possam oferecer o Acesso universal .
Parabens Lia pelo texto. Beijos
Betinha, força em sua NOVA luta.. bjoss
Restaurantes e bares são inaugurados em todas as esquinas desse imenso Brasil sem sequer se preocuparem com banheiros adequados aos deficientes e as necessárias rampas de acesso. A culpa não é diretamente dos engenheiros e arquitetos mas da Prefeitura local que “aprova” tai$ projeto$ de in$talaçõe$ comerciai$ liberando facilmente o alvará de funcionamento…
Bete, vejo também banheiros destinados a deficientes sendo usados impunemente por pessoas “saudáveis”…Vagas de estacionamento destinadas a deficientes, em supermercados e shoppings, sendo impunemente ocupadas por indivíduos “saudabilíssimos”. Trata-se de falta de Educação/Urbanidade do povo brasileiro…
Ótimo artigo. Quando temos limitações percebemos ainda mais o desrespeito.
Olá Jairo!!!!
Deficiência + maturidade definitivamente não combinam. Completo 70 anos o ano que vem.Tudo é muito mais difícil.Eu luto muito para manter minha independência.
Beijos,
Beth
Vou te escrever!!!!
Brilhante, Lia. Não à toa, é amiga do Jairo. Copio o pedaço que, a meu ver, é o alvo a acertar: “Nós, os jurássicos, durante grande parte de nossas vidas fomos educados e treinados para vencer individualmente os desafios e sermos independentes. Com a militância no movimento por direitos, aprendemos e ensinamos que não era mais nossa obrigação empunhar nossas bengalas canadenses para enfrentar e vencer heroicamente os obstáculos. Ao contrário, é nosso direito que as barreiras sejam removidas.” Ah, como eu queria que mães de autistas lessem isso, aprendessem com quem já pavimentou o caminho e tirassem dos seus filhos o peso da responsabilidade individual que Lia tanto carregou.
Grande abraço, Manuel!
Que lindo, Jairo! E que reflexão importante.
Penso nisso diariamente – o que temos que fazer hoje para que possamos envelhecer bem, tanto a Sofia como eu. E se chegar um momento que eu precisar dela, como será?
Agora, na minha cirurgia, ela ficou de enfermeira o tempo todo. Segurava a gaze, limpava a incisão inflamada (mesmo com um pouquinho de nojo, ela não saia do meu lado).
Já fui filha cuidadora e sei que a acessibilidade nos hospitais ainda é muito falha.
E também tenho a preocupação com o custo da tecnologia assistiva para que as pessoas com deficiência tenham cuidados e atendimento dignos.
Enfim, tantas questões e poucas respostas, mas um tema que precisa muito ser discutido, para que novos caminhos apareçam. Mais uma vez, excelente texto!
Beijos, Dê!