Vítimas?

Jairo Marques

Recebi uma mensagem de uma pessoa surda relatando a seguinte questão:

– Ele assinou contratos de empréstimos com dois bancos, mas, os gerentes não sabiam a língua dos sinais e, por isso, ele assinou os documentos sem ter total noção daquilo que estava fazendo….

Bem, os juros eram altos, ele se danou e está em atraso com os pagamentos, sendo cobrado com frequência pelas instituições. O detalhe que ele também não consegue negociar, pois alega que não há o serviço telefônico que precisa para se comunicar.

O resumo da ópera é que a pessoa alega ser vítima de discriminação/preconceito/desrespeito devido a sua condição de “malacabado” sensorial.

No mundo ideal, as instituições que prestam serviço teriam todas as condições de acessibilidade, inclusive as de comunicação, obviamente, e respeitariam integralmente as leis que preveem o atendimento às diversidades.

Acontece que, infelizmente, estamos longe dessa realidade e isso é de conhecimento de qualquer brasileiro, certo? Penso, então, que uma situação como a narrada acima é se fazer de vítima de forma consciência…

“Creeeedo, tio… mas o moço disse que não entendeu o contrato!”

Entender bem um contrato não é “regalia” de quem ouve bem, quem lê bem, quem é inteligente… é algo que depende muito mais de interesse e de exigir clarezas diante de todas as nossas dúvidas.

Uai, povo, como é possível dar “ok” em uma obtenção de empréstimo sem que as regras da brincadeira estejam certas para você? E como avaliar, posteriormente, que foi a sua deficiência que te lascou?

Acho que qualquer pessoa “quebrada” deste país precisa ter a ciência que, apesar de estarmos na batalha por um mundo mais plural, somos nós, em última instância, quem devemos garantir que benefícios pessoais estejam bem resolvidos.

Para isso, em um consultório médico, terei de pensar em uma forma de passar bem o meu problema, antes de assinar algo que não compreendo, preciso repartir aquilo com alguém de minha confiança ou eu mesmo buscar meios de traduzir o documento.

Volto a dizer: é evidente que os instrumentos de acessibilidade precisam estar em todos os lugares, que é preciso labutar pela ampliação dos recursos, mas nos vitimarmos diante de algumas situações usando a deficiência como escudo, parece a mim algo muito complicado.

Não é o fato de ser cadeirante que me garante sempre a prioridade, sempre ter sobre mim um olhar “especial”, sempre contar que os outros irão entender minhas limitações.

Quando se coloca a “carteirinha de deficiente” como escudo para tudo na vida, ganha força tudo aquilo que muitos não querem: dózinha, superproteção, diferenciação de olhar, receio de integrar.

Claro que há diversas situações em que, realmente, há preconceito, há flagrante desrespeito de direitos básicos e há sacanagem/má-vontade alheia em entender as diferenças. Nesses casos, que se recorra à Justiça, que se denuncie e que se busque o reparo imediato.

Porém, há uma série de situações do dia a dia que apelar à “malacabação” chega a ser constrangedor e todo cuidado é pouco. O avanço e a visibilidade que a inclusão tem ganhado não legitima ninguém a querer tirar vantagem.

Comentários

  1. Bom, pelo que entendi, o rapaz é surdo e não cego.

    Deveria ter feito o que qualquer pessoa de bom senso faria, ler o contrato e perguntar sobre suas dúvidas. Se não pode ouvir, peça pra escreverem, simples assim…

    Eu que tenho dificuldades de fala, ando com um caderninho, se alguém não me entende, escrevo. Quem quer, se vira!

    Esse tipo de coisa me irrita profundamente, se fazer de vitima pra conseguir vantagens só faz com que percamos o pouco respeito que conquistamos a duras penas.

  2. Jairets, não quero aqui generalizar, mas há dois fatos envolvendo PcD que me chamaram a atenção. O primeiro é um senhor que pede esmola numa esquina de Goiânia, a bordo de sua cadeira de rodas. Ele tem, de fato, um problema de locomoção, mas nada que o impeça de caminhar, como já presenciei inúmeras vezes. Outro fato foi um colega que ‘meteu o pé na jaca’ no pior sentido da expressão, porque descumpriu a legislação e normas da empresa, tendo sido punido por isso. Em sua defesa ele, que tem sequelas de pólio, alegou que tudo não passava de discriminação contra um deficiente. É complicado e triste isto, mas concordo que tem gente que usa a própria deficiência para obter dividendos.

    1. O caso do mendigo envolve elementos que, a meu ver, vão além do coitadismo… mas isso dá um post… (vc sempre abre alas para isso, né?)… o outro caso, para mim, é um exemplo perfeito para o post! abrasss

  3. Se o surdo tivesse alguma dúvida, que não assinasse, que levasse outra pessoa para explicar. Acho essa coisa de se esconder atrás da deficiência uma coisa super negativa pra nós “malcabados”. Bancar o coitadinho é o fim! Eu uso somente o cartão de estacionamento para deficientes pq eu preciso. Tenho falta de equilíbrio que fica pior quando eu me canso muito. Só isso. Cada um tem as limitações específicas, mas, no caso, parece mais que ele está atrás da deficiência dele, que, repito, é muito ruim para a nossa luta. Bjs.

  4. Cada vez que leio uma matéria sua, fico impressionada com a sua clareza! Adoooro!!! Você pontua como um check list a sua visão. Ela aborda todos os pontos e explica, e finaliza. Tem certeza que não fez Direito também? Endosso na íntegra seu ponto de vista, e clapt clapt!! Aplausos pra você!

  5. Jairo, otimo texto e melhor ainda é os coments eu me divirto e aprendo muito.
    Parabéns por proporcionar a oportunidade de expressar a minha opinião e de quebra levar todos a reflexão por um mundo com menos coitadinhos e mais igualdade de direitos.

  6. Minha mãe não é deficiente, é alfabetizada, mas, na inocência cometeu o mesmo erro, enfim, acontece e por isso, todo cuidado é necessário. Como disse alguem lá em cima, deficiência intelectual seria diferente(desde que a pessoa fosse interditada).Agora,não vejo que a pessoa foi oportunista não, com alguns tem comentado,acho um julgamento precoce esse. Beijocassssss

  7. Oi Jarinho,
    Olha só, eu concordo em gênero, número e grau. E acho que – nesse caso específico – compete à pessoa prejudicada ir à justiça se queixar do contrato não por ela ter uma alguma deficiência, mas porque os contratos em geral são pouco claros e a pessoa que está buscando um empréstimo já é mais vulnerável, já está numa situação complicada. Então há uma má-fe das instituições financeiras em deixar tudo meio obscuro, pois sabem como que quando as pessoas precisam, elas tendem a agir por impulso.
    Agora quanto a usar a deficiência é algo que lamento muito, vai contra tudo o que queremos. Queremos respeito, queremos ser vistos como consumidores, como cidadãos, não como dignos de pena.
    Eu não uso essas carteirinhas, nem Atende nem qualquer tipo de coisa (embora não condene quem use). Uso o transporte escolar municipal porque não consegui particular.
    Em vez de uma carteirinha de “passe livre” eu queria pagar a passagem e ter ônibus, trens e metrôs mais preparados para nos transportar com segurança.
    Não quero passagem de graça de avião. Quero ambulift e atendimento decente nos aeroportos.
    Enfim, não quero caridade. Quero respeito e dignidade, e nem acho que é pedir demais.

  8. Oi Jairo, concordo plenamente. Se ele fosse deficiente intelectual caberia alguma argumentação, alegar desconhecimento depois que assinou é muita infantilidade.

    1. Carlão, se fosse um deficiente intelectual, aí eu imagino que o gerente estaria cometendo um crime…. A não ser que ele não seja interdita ou que tenha alguma declaração de que tem amplos poderes para tomar decisões… abrass

  9. Isso me parece a típica sacanagem de es esconder atrás da deficiência para não se fazer responsável por seus atos. Assinar um contrato sem ler é culpa da pessoa e não da instituição. E não ficam proclamando que os surdos não são deficientes mas sim um povo diferente? Só são deficientes quando interessa? Cansei desse tipo de gente.

    1. E se o intérprete era necessário, penso eu, a pessoa não poderia ter desistido… teria de planejar outras formas para compreender o documento.

  10. Concordo com sua colocação Jairo, mesmo porque o contrato é por escrito e caso ele tivesse dúvidas não deveria ter assinado, lembrando que a maioria dos bancos disponibilizam nas contas empréstimos onlines. A deficiência não é um argumento para ser usado. Muito inteligente e inclusiva a sua análise.

    1. Pois é, Ari… e tenho notado que a essa “arma” de abrir cofres tem sido cada vez mais usada. Isso cria um ranço contra um projeto maior de inclusão.

  11. Em um país de governo paternalista e que a maioria acredita que “deus proverá” nunca faltarão coitadinhos oportunistas.

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