A criança e o velho

Folha

Embora menos de duas semanas separem o Dia do Idoso do Dia da Criança, a distância da representatividade, da atenção e da comemoração entre as datas é hemisférica.

Para começar, os presentes. Em busca de agradar e encantar a molecada não se poupa o talão de cheques, mesmo que borrachudo (bate no caixa e volta ao portador).

São bonequinhas que dançam o “tcham”, jogos eletrônicos sanguinários com gráficos “maraviwonderfuls”. O importante é agradar, despertar um belo sorriso e garantir alguns dias de sossego aos pais.

O presente para o velho é diferente. Em realidade, para que presente se ele já teve tudo ao longo do tempo? “Dá um talco. A vovó adora andar cheirosa.” “O vovô não gosta de nada. Aquela caixa de lenço do ano retrasado, ele nem abriu.”

Ok, deixe-se a complexidade e o consumismo de lado. O que importa é a lembrança e o carinho manifestado com a presença no dia especial!

Visitar uma criança é sempre um prazer. Catar aquele pingo de gente no colo, abraçar, fazer jurar amor eterno, fazer “guti-guti”, tirar mil retratos em poses inimagináveis.

E o danado corre para todos os lados, derruba da mesa a panela de macarronada com carne moída e a família toda cai em gargalhada com a esperteza do herdeiro que é pura energia e já está na sala puxando o rabo do cachorro.

Ir à casa da tia octogenária envolve maior organização, tempo e disposição. Ela já não concatena mais as ideias direito, reclama de dores nos quartos, nas costas e em quaisquer outros cômodos do corpo.

Tia velha não gosta de fotografia, porque sempre sai muito feia, então ninguém nem se lembra de levar a Rolleiflex ou mesmo pedir um “olha o passarinho” para registrar o momento e postar no “face”.

Com as crianças, a torcida é para que logo comece a falar, mas com os velhos a esperança costuma ser forte para a boca fechar. A palavra infantil é bonitinha, mimosa, encantadora. O verbo do idoso é cafona, ultrapassado e repetitivo.

Incrível como um mesmo “serumano” pode ser protagonista de experiências de representatividade tão antagônicas no curso de sua história. De pequeno merecedor de absoluta proteção e carinho ao idoso em abandono, pouco festejado e raramente respeitado.

O velho para ser querido e enturmado tem de guardar em si um pouco da aura de infante. Simplesmente ser velho e levar o cotidiano da forma que bem entender pode abrir caminho à intolerância.

Já a criança que manifesta cedo traços de adulto, de velho, “vai ser muito inteligente” e, provavelmente, terá um futuro brilhante. Vai entender…

Mas o que me deixa mesmo de boca aberta são essas atuais correntes de pensamento que almejam encurtar a infância e postergar a velhice.

Para elas, menino com 12 anos que faça feiura e barbaridades, várias delas geradas pela própria sociedade, tem de ser ensinado no cárcere.

Em outra vertente, defende-se que é pouco para alguém ser considerado idoso aos 60. Toca trabalhar, pegar fila, ter obrigações chatas até os 70, 75. É bom para a previdência, para a economia, e para quem pode. Quem não pode que dê seu jeito.

Não está fácil desempenhar papel de gente nesse mundo. Felicidades às crianças, felicidades aos velhos.

Comentários

  1. Adorei o seu sexto
    São fatos cotidianos, mas poucos conseguem enxergar essas pequenas e grandes mudanças ao longo do tempo.
    Geralmente esquecemos que um dia vamos ficar velhos.
    Esse texto me fez lembrar de uma pequena proza com a minha vó. Ela comentou que já está com 73 anos e que poucos dão atenção. Poucos sentam para conversar e relembrar os velhos tempos, e ter uma conversa saudável e inteligente.

    MAIS UMA VEZ ADOREI SEU TEXTO PARABÉNS!!

    1. Stella, querida, muito obrigado!!! E qual o “esforço” que temos de fazer para compartilhar atenção?! Bem pouco ou quase nada, não é?! Bjos

  2. Achei muito boa sua comparação, as crianças merecem muito amor, respeito e educação e os idosos, amor, respeito e dedicação… fiquei emocionada pois, lembrei dos avós… já estão com papai do céu…um abraço!

  3. Tio,
    Minha vó sempre ganhava talco e caixa de sabonetes… Eu só podia dar carinho, já que dinheiro pra comprar presente não tinha. Mas todo carinho que eu dei, não foi nem um terço do que recebi dela… Por isso está tão viva ainda no meu coracão!
    Seu texto é uma homenagem aos que merecem amor, paciência, atenção, compreensão… tudo que um dia iremos também precisar.
    Beijocas!

  4. Achei muito interessante o contraste apresentado entre as fases da vida.
    A realidade das famílias mostra isso.
    Me encaixei no perfil “tia velha”.

    Adorei.

  5. Uma triste verdade. Na maioria das vezes, os velhos náo tem o amor e atenção que merecem .simplesmente porque a criança que ele um dia foi, se fou

  6. fiquei emocionada hoje, ao ler o texto, pois sabemos que muitos idosos são esquecidos, ou tratados como estorvo…o idoso, assim como a criança precisam de atenção e carinho e o convívio com a família é fundamental.
    Parabéns…

  7. Muito bom! Para quem tem ambos os representantes na mesma família, essa diferença de tratamento é escancarada.

    Adorei o texto! Simples e direto. Parabéns!

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