Surdocego

Folha

Os meninos tateavam tudo o que havia no jardim com cuidado de mariposas em busca de néctar. Cheiravam cada uma das flores e das folhas com profundidade e em silêncio. Sorriam com a surpresa de asperezas de caules ou com a maciez de pétalas.

Foi a primeira vez que me deparei com crianças surdocegas: pouco ou nada viam, pouco ou nada ouviam. Admito um impacto vertiginoso, um desconforto inicial desconcertante.
Como era possível ser realidade? Como a natureza conseguiu ser tão perversa? Uma desgraceira só já não era de bom tamanho para pagar pecados de mil anos?

Em seguida, fui tomado por uma admiração, um encantamento e um pensamento ainda mais agudo do que o que já me habita sobre a necessidade de entendimento e consideração às diversidades humanas.

Tudo o que se tem de concreto em cartilhas sobre o sentido de existir ainda é pouco, ainda é vago e não se fecha apenas em teorias evolutivas ou na busca linear por arroz com feijão, reprodução e feliz Natal.

Deficiências múltiplas parecem raríssimas, mas, na realidade, raros são os que conseguem sobrepor os desafios para aparecer em sociedade. Normalmente, são pessoas circunscritas à própria casa, longe da curiosidade e da compaixão dos outros, apenas compaixão e pouquíssima compreensão, atenção, ação.

E, diante de tantos “não me toques” de grupos diversos em relação a ir para uma escola regular aprender um pouco da lida de viver, aquelas crianças, que não viam e não escutavam, estavam em sala de aula aprendendo à sua maneira.

Os que haviam perdido a capacidade de ouvir posteriormente à cegueira desenhavam pontinhos nas mãos das professoras para se expressarem. Os que ficaram cegos após a surdez faziam sinais.

E o mais impressionante eram aqueles que recebiam a mensagem tocando no rosto do interlocutor e transformando os movimentos da face, da boca em sentido completo. Absurdo, não é? Genialidade, eu diria.

Os surdocegos de nascença ou os que adquiriram as deficiências precocemente precisam de técnicas específicas de comunicação para entender o que os rodeia.

Talvez a sorte daqueles pequenos é que sua mestra tinha sobrenome “Amoroso”. Fiquei sabendo nestes dias que se aposentou e foi viver no interior numa casa repleta de plantas, quem sabe para jamais se esquecer daqueles meninos surdocegos.

Aprendi com a professora “amorosa” que as pessoas com deficiências múltiplas precisam ser preparadas para qualquer porvir do dia a dia para que não entrem em pânico.

Assim, por exemplo, é preciso explicar que uma injeção será aplicada na bunda, que a temperatura quente da rua irá ficar gelada ao adentrar o shopping, que o lento se tornará rápido e assim por diante.

Estimuladas a se comunicarem, progridem e tornam-se cidadãs. Ninguém precisa viver isolado em si mesmo e todo o mundo tem potencial para conseguir ter alguma manifestação e interação com o ambiente.

Mas para que perder o sono e gastar a beleza pensando em como se viram esses “viventes”? Posso elencar várias razões: para administrar e valorizar mais as “perfeições”, para ser menos estúpido diante do que chama de dificuldade, para que se tenha ciência de que aquilo que se imagina plural pode ser absolutamente singular.

Comentários

  1. Hoje eu estou uma manteiga derretida… Nem sei direito o porquê, mas estou…
    Seu texto me tocou profundamente. Sempre tive curiosidade em saber como seria a educação dessas crianças… Claro, como poderia ser? Com amor! Longe da proposta simplista de que não é preciso dedicação, estudo, pesquisa, mas seu texto tratou do tema com muita delicadeza e propriedade. Amei! E o último parágrafo simplesmente arrasou. Perfeito, lindo. Tenho orgulho em ser sua amiga, viu? Beijos

  2. Li o texto. Fiquei,profundamente,
    sensibilizada.Agradecida,feliz e ainda mais orgulhosa por ter relação afetiva,familiar,profissional,com esta menção de reconhecimento.Nestes dias conflituosos,ainda encontramos retornos que alimentam a Alma.Parabens
    Monica Amoroso.

  3. Jairo. Excelente o texto. Dia 5 de setem teve Audiência Brasilia – Audiência pública para tratar da inclusão social da pessoa com surdocegueira.

    A coisa foi peleada mas é assim mesmo.

    Sou Alex Garcia. Perfil aqui: http://www.agapasm.com.br/alexgarcia.asp.

    Se tu queres saber de minhas considerações da e sobre a Audiência escreve email para então remeter o texto.

    1. Maravilhoso texto Jairo, parabéns!

      Tenho o privilégio de conhecer o Alex Garcia pessoalmente e sei o quanto luta pela inclusão e o suporte necessários pra todas as pessoas com surdocegueira e multideficiências no Brasil.

      Confesso que fiquei impressionada com a capacidade dele se comunicar com todos, mesmo sendo surdo e cego. Tem uma memória incrível, pois participei de algumas de suas palestras e ele faz tudo de improviso com uma alegria contagiante, impossível sair de suas palestras sem aprender algo.

      Parabéns Alex, por sua vida guerreira e por toda a sua luta em favor do próximo, mesmo com tantas dificuldades. E por ser sempre essa pessoa otimista, vibrante e acima de tudo muito sensível e humano.

      Beijinhos meu amigo querido, serei eternamente sua fã.

  4. Penso que todos precisariam ter uma professora Amorosa em suas vidas, não só as deficientes como também as comuns. Para os deficientes essa professora é mais que importante para que elas cresçam saudáveis em suas auto estimas, que é super importante para que elas vençam na vida. Parabéns pelo texto. Bjs Suely

    1. Su, como já falamos por aqui, professor é fundamental… Tivemos a sorte de ter excelentes mestres, não é? Bjosss

  5. Jairo… texto maravilhoso….e essa professora “AMOROSA(O)” a qual você citou… realmente o seu nome não é por acaso…sempre sonhou em proporcionar
    educação de qualidade para todos crianças , jovens e adultos independente de suas diferenças e em seus projetos nunca excluía …e sim… encorajava… e incentiva …mostrando que todos são capazes…
    PARABÉNS pelo texto e por essas palavras merecidas a nossa AMOROSA….
    Um forte abraço!!!!
    Com carinho
    Magali

  6. Jairo adorei este texto.Tenho 3 surdocegos na minha família.Minhas 2 irmãs e meu cunhado passei este texto para eles e acharam o maxímo e parabeniza por este texto maravilhoso de grande incentivo,motivação e superação para continuar na luta para que a surdocegueira seja reconhecida e respeitada.

    1. Trabalho com esta turma, e longe de serem isolados, estão muito além de nossas expectativas… Parabéns Andrea, te admiro muito.

  7. Jairo,
    Parabéns pelas palavras aqui escritas.
    Longe de sermos perfeitos, todos nós temos algum tipo de deficiência. Basta que tenhamos os caminhos, as oportunidades e estímulos necessários para que possamos nos desenvolver.
    Continue assim.
    Nelson

  8. Parabéns pelo artigo, bastante sensível e esclarecedor.
    É muito importante que a mídia aborde cada vez mais a questão das deficiências múltiplas, principalmente a Surdocegueira, afim de desmistificar o tema e derrubar o preconceito da enorme maioria da sociedade que desconhece o assunto.

  9. Trabalho há 30 anos com surdocegos e multiplos deficientes sensoriais em escola especial. Vi as crianças crescerem. Hoje continuo demonstrando a TRANSIÇÃO PARA A VIDA ADULTA.,para eles. É muito bom ler um texto assim como o do Jairo. Parabéns.Venha conhecer nossa instituição.

  10. È tão bom ler um texto sobre surdocegueira.
    Estou há 30 anos na area da deficiência múltipla trabalhando em escola especial. Posso dizer que vi as crianças crescerem assim, como está no texto. Hoje estão adultos,tenho sob orientação 11 alunos e contiuamos a demostrar para eles, agora, como é ser adulto, trabalho,vida social,etc..

  11. Excelente artigo, de sensibilidade impar. Sugiro reflexão semelhante com relação aos portadores de gagueira. Obrigada!

      1. Valeu, Jairo! Vc é demais!! Gostaria, se possível, que vc escrevesse novamente s/ gagueira por ocasião do Dia Internacional de Atenção à Gagueira – 22 de outubro. Obrigada!

    1. Querida, obrigado pela sugestão do vídeo! Essa escola que vc aponta era onde trabalhava a professora “amorosa”!!! bjosss

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