Alguém para se inspirar

Folha

Meu grande amigo Benê, motorista aqui do jornal, soltou o que para mim foi o melhor resumo do sucesso da visita do papa ao Brasil: “A gente anda muito carente de coisas boas, de pessoas que façam algo que nos inspire. Com tanta simpatia e tanto carisma, o Francisco encantou o povo”.

Passei o resto do dia matutando sobre a sentença do meu parceiro de trabalho, que tem sangue espanhol, coração de felicidade e fala mais do que papagaio na chuva.

Na música, não consigo ver gente à moda Caetano, Chico ou Vinicius. Não há novas canções que façam a juventude caminhar contra o vento, os desanimados cantarem que ser alegre é melhor do que ser triste, os românticos declararem que irão amar devagar e urgentemente.

Ligo o rádio e só o que ouço é um tal de “prepara que, agora, é hora do show das Poderosas” ou “uísque, água de coco, para mim, tanto faz”. Nada tem muito sentido ou faz a gente ganhar um tiquinho de força para encarar o dia, para enfrentar a noite.

Bingo para a Galinha Pintadinha, mas ninar um bebê tão gostoso como fazia a voz de Caymmi em “boi, boi, boi” não se encontra mais. Brincar com a imaginação com uma casa muito engraçada sem porta, sem janela, ao som macio e elegante de Toquinho, também não vejo possibilidades.

Posso concordar que esse meu discurso seja de um saudosista ou um choro de muito dodói para pouco mertiolate, como me disse uma leitora dia desses, mas arregalo os olhos buscando novas fontes para melar a alma de vigor, de paixão por tudo, de sorriso por nada, mas não encontro.

Que delícia era se fartar de inspiração para amar lendo aquilo que o Drummond escrevia a respeito do tão esperando dia em que chega aquela alma luminosa: “Quando encontrar alguém e esse alguém fizer seu coração parar de funcionar por alguns segundos, preste atenção: pode ser a pessoa mais importante da sua vida”.

Hoje, as meninas têm gostado é das variações do cinza, de blogs de maquilagem e de vídeos engraçados do Porta dos Fundos. Tudo muito rápido, prático, debochado e incolor. Para amanhã, pouco irá restar na memória e quase nada se guardará para sempre.

Temo pelo dia em que as bancas de flores irão sucumbir diante da força dos presentes tecnológicos e que os cartões dos ursinhos carinhosos, cheios de perfume e de marcas de batom, vão estar estacionados em museus em vez de guardados em lembranças de grandes amores.

E essa toada de letargia de fazer por onde borboletas se alvorocem na barriga e grilos saltitem pelo cérebro vai atingindo a todos, mas principalmente aos que mais precisam de energia para transformar tudo aquilo que desanda pelo mundo.

Professores, enfadados de ganhar pouco e serem hostilizados por alunos, não têm mais o vigor de ensinar que a vírgula jamais poderá separar o sujeito do predicado e, assim, Maria sonhará eternamente com José.

O médico não quer olhar na cara e muito menos explicar a doença, o político não quer parar de roubar nem trabalhar às sextas-feiras, o cozinheiro nem pensa em dividir o bolo e jornalista não colhe notícia boa.

Está lançado o movimento “Alguém para se inspirar”.

Comentários

  1. Maravilhoso texto, acho que sou saudosista também, rsrs…

    Fiquei matutando e realmente está difícil de encontrar alguém de quem talvez sinta falta no futuro, que coisa triste de se dizer…

    Tirando Marcelo Gleiser e Mario Sérgio Cortella, que são meus ídolos é claro.

  2. Muito bonito. Um texto com alma. Sinto falta e tenho os mesmos receios que o Benê. Parabéns por passar uma mensagem tão bonita. Abraço, Cleber.

  3. Lindezo você foi ao encontro do que tenho pensado esses dias. Venho pensando sobre isso há algum tempo. Trabalhando com o público em geral diariamente, percebo que as pessoas não querem ter trabalho. Quanto mais mastigado melhor, e tudo que falou no texto é de uma época em que as pessoas gostavam de ler jornais, livros, participar da política, enfim, pessoas que queriam melhorias e liberdade.
    Hoje a liberdade (pelo menos de pensamento) chegou e as manifestações que poderiam ser uma forma de cobrar tudo o que merecemos, veio junto com vândalos que fazem o que não devem, e com isso se vai nosso “poder” de reivindicações, que antes era na música, jornais e livros e agora que podemos sair nas ruas, entenderam tudo errado.
    Lindo texto, como sempre. Bjs

  4. Muitas vezes me observo “quase-saudosista” com um discurso do tipo “ah, no meu tempo”, e como discordo de gente que acha que só no passado coisas boas aconteciam, tento evitar esse “quase-saudosismo” que me ocorre…o problema é que nessa hora noto que, apesar do “meu tempo” ser hoje, esse “hoje” tá bem ruinzinho mesmo…difícil ler boas produções, ouvir composições que emocionem, ver atitudes honestas…mas daí penso em quanta gente ADMIRÁVEL eu conheço e percebo que no HOJE tem um montão de coisa boa, tão boa quanto as de antigamente…o que ocorre é que não estão na mídia, na TV, no rádio, na cultura divulgada pelo seu preço…é preciso caminhar, buscar, garimpar em ruas de bairros distantes, gente admirável…e encontra-se…que bom, que “muito bom”…tenho listas de pessoas em quem me inspirar, e agradeço a cada uma delas, pois continuarei tendo histórias para contar aos meus netos, quando puder sem filtros utilizar o discurso do “no meu tempo”… ; )

  5. Jairo
    Sou professora e tive o prazer de ler o seu texto para os meus alunos.
    Suas palavras foram inspiradoras para eles.
    Parabéns!!!!

  6. E assim caminha a humanidade, as ações imediatistas já não dão espaço para qualquer tentativa inovadora. Com a mesma rapidez, um ídolo Pop nasce e cai em ostracismo, já diziam os Titans …. A Melhor Banda de Todos os Tempos da Última Semana. Não querendo ser saudosista mas, vamos buscar inspiração em quem realmente seja consistente.

    Um abraço

  7. Texto perfeito, nos faz parer e refletir sobre nossas escolhas e o que realmente é relevante em nosso cotidiano…
    Obrigada por contribuir!
    Kelly

  8. Texto excelente e verdadeiro! Retrata fielmente o que vivi e o que vejo minhas filhas viverem hoje e, olha, não sinto inveja nenhuma, viu?! Aqueles tempos foram preciosos!

  9. Belíssimo texto, amigo Jairo. Eu também me flagro com freqüência refletindo sobre esta revolução silenciosa do novo ser humano. O espírito renascentista precisa ser resgatado. O modelo atual baseado na rapidez e indicadores de produtividade está levando à insetização da sociedade humana, aniquilando a riqueza maior com que fomos agraciados pela Natureza: a auto-percepção e a consequente capacidade de crescimento espiritual.
    Abraço e bom dia, meu amigo.

  10. Hoje temos sim Artistas bons, que nos fazem sentir vontade de remar contra a maré, experimente ouvir musicas de Criolo.

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