O crime e o perdão

Folha

É de reconhecer, no mínimo, a nobreza do ato do ciclista que perdoou o jovem motorista baladeiro que, munido de um carro, avançou sobre a faixa reservada às bikes, arrancou-lhe o braço direito e fugiu.

À vítima não coube a chance de tentar um possível reimplante do membro decepado, pois o estudante atropelador não teve tempo de pensar nisso. Pensou apenas em escafeder-se daquele momento azedo e livrar-se do membro que sujava o carro e por demais poderia comprometer seu futuro. Aquele braço, afinal, servia apenas para limpar vidros.

O Brasil tem um exército de amputados, mas, diferentemente de nações em guerra, em conflitos civis, nos quais soldados se ferem em minas terrestres ou à bala, os batalhões tupiniquins formam-se em trincheiras urbanas (na violência do trânsito), no descompromisso do labor (em acidentes por displicências) e no descaso com a saúde preventiva (nas amputações geradas pelo diabetes).

Ao passo que se aplaude o perdão do humilde operário, a sociedade tem de ser implacável para cobrar a fatura que coube a si no crime: o custo elevadíssimo do processo de reabilitação do rapaz, um possível –mesmo que temporário– pagamento de benefício social e o valor de reprogramar a vida e o trabalho que será despendido ao jovem.

Não tenho dúvidas de que o garoto irá se recuperar bem e de que voltará a atuar plenamente em todos os campos de sua vida. Mas, após se apagarem os holofotes sobre sua história, o que deve acontecer em breve, ele terá de enfrentar a rudeza de sua nova condição, muitas vezes, sozinho. E não haverá perdão: reaprender a conhecer seu corpo, suas possibilidades e suas habilidades vai ser fundamental para seguir adiante.

“Ah, mas pelo menos ele já ganhou uma prótese ultra, mega, hipersofisticada!”

Sorte grande. Próteses modernosas que aparecem na TV, dando tchauzinho, tocando cavaco e espremendo piolho, são para poucos. O valor desses equipamentos, que realmente atingiram um nível “maraviwonderful” de sofisticação, é de fazer a gente sentar no asfalto quente e chorar uma semana sem parar.

Há próteses que valem mais dinheiro que automóvel de playboy solto na rua para arruinar a felicidade alheia com velocidade e irresponsabilidade. O uso desses equipamentos exige treino, testes, paciência. Além disso, é preciso aguentar dores, tanto físicas como de fracassos e de alguma revolta.

Ao contrário do que se possa imaginar, o sistema de saúde pública do país não garante que a remodelagem da funilaria avariada seja realizada com produtos de primeira linha, que seja tudo o mais puro creme do milho. Quem quer algo além do básico tem de fazer rifa de frango assado ou quebrar o porquinho para conquistar.

Pessoas com membros amputados podem e devem ter um cotidiano normal. Muitas vezes, elas estão ao lado por anos e jamais se percebem suas peculiaridades, tamanha é a perfeição desse nível de reabilitação, de readaptação.

É grandioso e edificante perdoar, porém crimes podem respingar muito além do círculo entre vítima e algoz. Neste momento, faz-se necessário o rigor da Justiça e que se dê o exemplo para a juventude.

Comentários

  1. a influencia psicologica na vida dessa pessoa, a mutilação efetuada em uma familia só sente mesmo quem está nela. Olha não sou muito disso, alias, não sou disso mas se isso tudo acontecesse a ele e sua fimilia mudava eu meu estilo de vida.

  2. jAIRO QUERIDO SEMPRE escrevendo de maneira a tocar pontos práticos sem esquecer o lado emocional…lembrei que uma prótese maravilhosa e cara além de adaptação precisa de manutenção…ai como é cara a manutenção! A gente que usa algum penduricalho para suprir uma função perdida ou avariada sabe dos custos. Mas espero que essa rapaz possa reconstruir sua vida, estudar, trabalhar e ser feliz!

  3. Jairo, meu caro, você é engraçado quando a situação permite e sério quando se faz necessário. E sempre consegue passar o recado. Acompanho o seu trabalho com muita admiração. Parabéns.

    1. Poxa, Renato, muito obrigado pelo apoio! Qdo as pessoas entendem o sentido da “graça” nos meus textos, parece que minha missão estão duplamente cumprida… abraço

  4. Lindezo, acho meio punk esse lance de perdão. Em situação idêntica é bem provável que eu também viesse a perdoar, mas não com essa rapidez. Levaria anos, eu imagino, o que significa que o ciclista me dá um banho no quesito grandeza de espírito. Não me refiro ao incidente que resultou na amputação do braço do rapaz, mas mesmo sem entrar no mérito do teor alcoólico e velocidade que o atropelador desenvolvia, não consigo esquecer que ele não deu à vítima sequer a possibilidade de um reimplante, ao covardemente jogar fora o braço arrancado, como quem se livra da prova do crime. Isto para mim é o X da questão: esse ato demonstrou total falta de respeito pelo outro, desprezo pelos direitos do outro, coisas que abomino.
    Daí minha total concordância no tocante à necessidade de uma ação exemplar do judiciário, para que este caso não caia na vala comum e acabe incentivando o surgimento de outros Alex e Thors.

  5. Perfeitos os seus comentários. Em outros países, por muito menos, a população protesta muito mais. Pobres de nós, tão pacíficos… (Lívia Ferreira, sua ex-caloura na UFMS)

    1. Beijos, querida…. eu acho que estou te devendo uma resposta de email, não?! ahahhahahaha…. se puder, escreva de novo… minha vida é meio loka!

  6. Nem imagino como deve ser a sensação de estar faltando algo no nosso corpo! Porque é inimaginável! Desejo muita força a este jovem, muita serenidade pra refazer sua vida e realizar suas conquistas todas as que um jovem da sua idade seja capaz!
    Parabéns Jairo pela reportagem tão bem escrita colocando em palavras o que está em nosso pensamento e não sai! Um beijo e um queijo!

  7. Parei em uma cadeira de rodas vitimado pela violência que assola a nossa sociedade, sofri um assalto dentro da minha casa, não reagi e mesmo assim, não sei se pela maldade, ou por uso de entorpecentes fui alvejado com um tiro de revolver calibre 22, que perfurou o meu pulmão e acabou por acertar minha coluna, consequentemente queimando a minha medula. Tenho lesão alta T3, isso foi a um ano e meio, mas nunca me preocupei com o fato de estar em uma cadeira de rodas, ao contrário, a faço todos os dias minha aliada na minha busca incessante por melhoras, o larápio foi preso e condenado, era o minimo que deveria mesmo acontecer a ele, pois ele ao atirar dificultou a vida de um pai de família, tenho dois filhos de dois anos e o outro com 11 meses, se tivesse ido nem saberia que seria pai novamente.
    Em relação ao perdão, de coração perdoei, não entendo ainda os motivos, mas perdoei e não pretendo me igualar a ele, nem em sentimentos tão pouco em ações, mas não poderia de forma alguma deixar que a justiça fosse feita, é fato que a condenação do ladrão não trará meus movimentos de volta, mas a sensação de impunidade é pior do que a dor que sinto todos os dias, por isso fizemos de tudo para que o mesmo fosse preso e que a justiça fosse feita, mesmo sabendo que daqui a alguns anos ele estará nas ruas novamente!
    Devemos perdoar, mas também temos que buscar a justiça, se vitimar é pior, mais pior ainda é o sentimento de impunidade se não fizermos nada!

  8. Uma história e tanto…E fato dele perdoar é algo maravilhoso,mas é muito cruel o que ele está passando.Essas nossas leis precisam mudar,e cada dia que passa as pessoas passam impune,isso é revoltante!!bjs querido

  9. Jairo, impressionante o seu dom de colocar em palavras o que às vezes passa em nossa cabeça, mas é difícil de expressar com tamanha clareza. Perfeito.

    1. A minha proximidade com os “dramas” de muitas vidas ajuda nesse processo, querida! Bom te ler aqui… bjos

  10. Gosto muito da sua forma de abordar com humor ( por vezes negro) situações tão graves quanto essa. Chamar esse senso de ponderação do que vai além do ato generoso do perdão, é no mínimo muito interessante. Focar o todo, o ato em si e suas consequencias. Vale refletir e vc na lata, como se diz, conduz a isso.
    Sou fã de carteirinha dos seus escritos

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