O casamento da diversidade

Folha

Uma cena única quebrava vários paradigmas que envolvem a vida das pessoas com deficiência
 
Tinha mesmo de ter acontecido em uma igrejinha de São Judas Tadeu, o santo que, segundo seus devotos, viabiliza causas desacreditadas, impossíveis, “complicosas”, como diria uma tia minha que já morreu.
 
Os desavisados ficaram curiosos com a estrutura em placas metálicas que formava uma rampa suave que vencia os degraus até o pé do altar e com a quantidade de gente em cadeira de rodas e meio tortinhas presente. Teria havido rebelião na Santa Casa?
 
Nada disso: era apenas o casamento da diversidade. Uma noiva tetraplégica daquelas que usam cadeira motorizada, com seu noivo grisalhão, inteirinho, boa-pinta e sorridente. Mas só olhares mais atentos entenderiam de fato o porquê do batismo de “diversidade” à cerimônia.

O padre era daqueles velhinhos, meio surdos e simpáticos. Um dos padrinhos se segurava apoiado em uma bengala, e os demais sorriam de uma maneira tão intensa que pareciam eles mesmos os agraciados com o matrimônio.
 
Entre os convidados, uma moça branquinha, também cadeirante, ao lado do marido “normal”, abrigava no colo um casal de pretinhos, seus filhos adotivos. Os quatros com cara de felicidade.
 
Como o mundo tem mudado, pensava eu, enquanto a noiva adentrava o evento. Detalhe importante: ela não foi num carro luxuoso até a igreja. Saiu foi de um táxi acessível, desses que ainda pouco se veem, mas que muito ajudam na vida de pessoas com mobilidade reduzida.
 
A bela de branco passou por mim, que estava no gargarejo, e deu um sorrisinho –deve ter feito isso umas 300 vezes no percurso, evidentemente. Mas ali na minha frente, uma cena exclusiva: ela passando discretamente em cima do pé do noivo com a roda da cadeira. Como o amor é para essas coisas e outras, ele aguentou impassível.
 
Ao som instrumental de “Numa folha qualquer, eu desenho um sol amarelo”, entram duas crianças com as alianças. Gêmeos, filhos da noiva e de seu passado. Difícil segurar a choradinha.
 
E pensar que uma cena única quebrava sozinha vários paradigmas que envolvem erroneamente a vida das pessoas com deficiência: o da impossibilidade de gerar menino, de abraços apertados com calundus, de estátuas diante da festa diária da existência.
 
Mas o final da cerimônia guardava para si o melhor momento: a coroação do espírito do diverso de uma sociedade mais moderna e inclusiva tão sonhada.
 
Enquanto uma voz com sotaque lindamente italiano cantava ao fundo “Eu tenho tanto para te falar, mas com palavras não sei dizer”, os recém-casados deixavam o altar acompanhados da família: os dois pequenos dela e o adolescente dele.
 
Valores humanos se sofisticam à medida que se respeita mais o modo como as pessoas se sentem felizes e realizadas. Valores humanos ganham amplitude e beleza quando ultrapassam carapaças visuais, ultrapassadas e estigmatizadas.
 
O casamento da diversidade ainda contou com momentos “maraviwonderfuls” em sua festa, encerrada com um show dos mais escandalosos e “purpurinados” possíveis: uma drag queen montadíssima encenando “I Will Survive”.

Comentários

  1. Jairo, sou professora da rede pública municipal de São Paulo e lemos o seu texto no nosso horário coletivo. Comecei a dar aulas este ano no CIEJA, temho vários alunos deficientes e adoraria trocar figurinhas com você. A leitura de seu texto deu muuuito pano pra manga!! Obrigada e um abraço.

  2. Jairo;
    Eu que trabalho em levar alegria, arte e encantamento, faço minha missão maior “fazer pessoas mais felizes”, fico contente em ler seu texto tão sensível e inteligente.
    Falar que sua narrativa é sensacional é pouco, consigo ver e sentir o clima da festa.
    Noiva Flávia e noivo Wal me deixaram ser o que sou, assim vc também me sentiu.
    Felicidades eternas aos noivos.
    Obrigada.
    Tchaka Drag Queen
    Rainha das Festas de Casamentos em todo Brasil.

  3. Eu amo a frase e ” Viva a Diversidade”, essa minha amiga ai, me ensinou muito sobre este tema, é uma das pessoas mais encantadora e guerreira que conheço. Este casamento lindo e essa nova vida é mais que merecido pra ela… que eu tanto aprendi, aprendo e amo.
    Um super beijo,
    Minha xara.

  4. Que lindo, Jairo! Quando eu leio um texto como esse, me lembro que não posso parar de sonhar com um mundo melhor e com um amor verdadeiro!

    Um abraço,

  5. É realmente aí está a prova que tudo é possível, é só acreditar, muitas vezes colocamos obstáculos onde não existem, este exemplo de diversidade é a prova que muito temos que aprender enfrentando dia a dia os paradigmas por nós mesmos inventados.
    Parabéns aos Noivos!!!!!

  6. sua tia que falava ” compricosa” ta vivinha da silva, num morreu nao, sai pra la agourento!. Eita que esse casorio foi animado demais da conta. Beijim

  7. Lindo texto! Já tinha chorado vendo a Flávia com seu vestido de noiva… agora, lendo o texto, chorei mais uns dois litros porque “vi” o casamento.
    Felicidades aos noivos e a todos aqueles que acreditam!

  8. Jairo, parabéns pelo fantástico texto!
    Para um momento tão ímpar como esse suas palavras vieram a altura!
    Parabéns a Flávia e a todas os outras Flávias no nosso mundo, que dia a dia vencem obstáculos em busca de uma coisa tão “simples”, a FELICIDADE. Não importa se usamos cadeira de rodas (ou hoje em dia qual a marca da cadeira), se somos, como voce diz, “tortinhos” ou se somos “normais”, vamos viver a vida da forma mais plena possível!
    Grande abraço

  9. Ahhhhh Jairooooo, que lindo! Me arrepiei!!!
    você usa as palavras de uma forma tão tocante, que é possível até ficar com o sorriso dos noivos na mente!
    bjokas

  10. Jairo, eu que também estava lá e fui, como você lindamente colocou, agraciada em poder presenciar como madrinha fiquei emocionada com sua descrição perfeita de tudo.
    Parabéns por dividir esta história que como tudo da Flávia faz, ilumina e ajuda a melhorar o mundo.

  11. Jairo,
    Eu e o Wal ficamos honrados em ler um texto tão sensível inspirado no nosso casamento. Voce conseguiu descrever, observando esse nosso momento, as conquistas que já existem e sao possíveis na vida das pessoas com deficiencia. Alem disso, constata lindamente a velocidade das mudanças que experimentamos no mundo. Tudo está mudando para melhor. E voce, com suas palavras, é um agente transformador poderoso.
    Ler voce sempre emociona, nos faz rir, nos faz pensar, aprender e sonhar.
    Obrigada pelo carinho, pela amizade e pela parceria de sempre.
    Um brinde a diversidade, ao amor a e felicidade!
    Beijos,

    1. Todas as vezes que me encontro com vc, Flavinha, uma nova história nasce na minha caixola. Vc é inspiradora e pronta. O seu casamento, para mim, foi berço de um relato que vale para todos que tem coragem de enfrentar, de mudar, de viver e de fazer valer a vida…. bjosssss

  12. Esqueci de te contar que Wag foi pagem no casamento do técnico dele de natação. Estava lindo, com a roupa igual a do noivo! Beijoca

  13. Que lindo texto querido Jairo, não pude deixar de perceber algumas coincidências com o meu casamento, também cheguei de taxi acessível, saímos ao som de “Como é grande o meu amor por vc”, e claro eu estava de cadeira motorizada e meu maridão lindo de pé… Faremos 3 anos de casados, e MUITO FELIZES em maio, Deus abençõe esse casal lindo!

  14. Jairo, parabéns pela maéria. muito boa!
    Estava presente e pude ver de perto tudo que voce passou tão bem. Feliz e orgulhosa da minha sobrinha linda.
    Felicidades aos noivos
    um grande abraço, para sua esposa linda também

  15. Nossa Jairo, esse foi o casamento do ano, ao que vi pelo seu texto, Flavia deu o grande exemplo da diversidade humana onde o mundo tem espaço para todos e que barreiras e preconceito está na cabeças de pessoas pobre de espirito. Essa menina foi com certeza alguém que por trabalhar numa empresa de televisão de potencia maxima e podia ter entre seus convidados apenas celebridades ilustres, mais ela não, ela quebrou o paradgma, em todos os campos.
    Parabéns pela matéria e parabéns, e parabéns Flavia Cintra, e toda felicidade do mundo.

    1. Oi, Cláudia!
      No nosso casamento, eu e o Wal tivemos 150 convidados ilustres. Ilustríssimos! Eram as pessoas que amamos, famiares e amigos, gente que faz parte da nosso vida e queremos que esteja conosco para sempre. Sao essas as relações que importam. O resto passa.
      Super obrigada pelo carinho.
      Um beijo,
      Flávia

  16. Essa drag quenn que viste na festa, em verdade estava travestida mesmo, mas te afirmo sem sombra de dúvidas que se permanecer nesta sua apologia muito em breve haverás de ve-lá face a face!!!and you will not survive!!

  17. Se até quem lê se emociona ( e se emociona ainda mais com o fato de que as coisas podem sim, mudar pra melhor) imagina quem estava lá! Só me ficaram 2 dúvidas.. o que é calundu? rs E a segunda é algo que sempre me perguntei desde que comecei a ler jornais e blogs..de onde vem esse “olhar apurado” dos cronistas,escritores,jornalistas sobre a vida cotidiana? Sempre quis saber e nunca tive a quem perguntar ( e lamentar por eu tb nao ser assim). No mais,desejo muitas felicidades e união à essa nova grande família,que representa a nova cara do Brasil.

    1. kkkkk boa, Thiagão… adorei as perguntas, vamos lá: Calundu quer dizer chateação, estar de bode, saca? ahahahhaha… acho que puxei muito nesse vocabulário, né? Sobre o olhar, avalio que ele não seja algo especial dos jornalistas. É algo que nasce com as pessoas: ser observadora, ser atento ao que acontece ao redor. Dá para desenvolver com técnica também!!! Abração

  18. Que lindo texto Jairex, imaginei cada cena descrita, fiquei emocionada!! E que os valores humanos continuem se sofisticando… Beijo tio!!

  19. Nossa Jairo, muito legal mesmo e isso aconteceu no meu casamento quando meu filho mais velho ( fruto de um relacionamento anterior) foi pagem junto com minha filha do meio (fruto do relacionamento atual). Como você mesmo disse, o mundo mudou muito…

    Um abraço de todos de Três Lagoas/MS.

    Weslley (filho da Nirinha Cabeleireira kkk).

  20. Deve ter sido maravilhoso, tio! Gostaria de ter visto tudo isso. Cadê as fotas?? Desejo muita felicidade a Flávia, ao esposo, união e amor para essa família.
    A diversidade precisa ser respeitada e apreciada. Coisa chata todo mundo igual…
    Beijokas mil!

  21. Jairo.

    Dei umas voltinhas no passadocom esse seu texto lindo. Me vi no meu casamento, na capela dentro da Universidade São Judas.
    Foi um diu radiante mesmo.
    Parabéns ao casal e toda felicidade do mundo pra eles e pra nós também!
    Abraços.

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